Ai que saudades das terças-feiras de antes.
Dia de sessão na Loja, só à noite, mas o coração mostra-se diferente logo pela
manhã. Para uns, mera ansiedade; para outros, chega a dar uma aceleração no
peito, estilo motor de Fiat 147 aquecendo com o afogador puxado. A cunhada,
diante da inquietação do marido - que se repete britanicamente no mesmo dia da
semana - não perde a oportunidade de cutucar o coitado: "O que que tem lá
de tão bom, assim? Nunca vi, toda terça você fica que nem pinto no lixo!"
Hora de engolir o sapo, conter a agitação e
tocar em frente, aguardando o fraternal e caloroso reencontro com os Irmãos.
Afinal, sequer seria possível tentar traduzir, em palavras, tantos e tão
intensos momentos de alegria da alma. Antes da sessão, cumprimentar os Irmãos é
algo simplesmente especial. O sorriso no rosto de cada um é contagiante e
afasta qualquer agrura externa. É o abraço de urso dado pelo gigante (de
coração maior ainda), que te faz tirar os pés do chão, literalmente. É a mesma
piada, feita pelo pândego de sempre, indagando se o Irmão com balandrau
amassado tirou o traje da garrafinha de Coca-Cola. É o ósculo respeitoso
distribuído, sem miséria, em sinal de paz e fraternidade. É o Mestre de
Cerimônias fazendo mágica para organizar a sessão nos mínimos detalhes,
inclusive pegando de supetão os novos Mestres, para que debutem em cargo de
efetivo trabalho ritualístico. É a conversa com o decano da Loja, que sempre
chega antes de todos e tem na manga várias histórias das boas para compartilhar
com entusiasmo. É o burburinho da sala dos passos perdidos, quando já se
amontoam os Irmãos paramentados que, a essa altura, já não dão conta de saudar
um a um, mas não deixam de fazê-lo com os olhos e com um leve curvar de cabeça,
dando o recado de que, no ágape, o abraço e o papo serão certos. É, enfim, a vă
tentativa de silenciar a emoção dos últimos conversadores do fundão, para
viabilizar a entrada no Templo. Vai explicar tudo isso...
Durante a sessão, muda o clima,
intensifica-se a emoção e a recompensa da alma vem em doses cavalares. O Mestre
de Harmonia escolhe, sem dó nem piedade, a batida melódica certa para a
transcendência do pensamento, de forma ritmada com os passos da marcha de
entrada. O piso mosaico hipnotiza. A abóbada celeste nos conduz à imensidão do
universo, de forma distante dos limites materiais da vida profana. É possível
visualizar as energias dos Irmãos convergindo para um centro comum de vibração,
que retroalimenta a todos em tempo real. Com a leitura do Livro da Lei, a voz
única do Irmão Orador ganha penetração espiritualizada e cala fundo no
semblante daquela assembleia de Maçons. E por aí segue a nossa montanha russa
de emoções.
Quando a ritualística acaba, a sensação é de
que todas as energias foram restabelecidas. Lembra o River Raid, do antigo
Atari, quando conseguimos percorrer toda a fase do jogo em nosso aviãozinho,
atirando nas adversidades (navios, helicópteros, etc.) e, ainda assim, saímos
com o tanque cheio, dado o aproveitamento de todos os pontos de
"fuel".
O ágape, organizado carinhosamente pelo
Mestre de Banquete, poderia sugerir o fim dos trabalhos daquele dia. Ledo
engano! Come-se e bebe-se bem, sem dúvida! Isso, porém, é apenas o cenário que
dá azo a uma ebulição da fraternidade, troca de conhecimentos, conversas sobre
amenidades, trabalho, família e a própria Ordem.
Realmente, tentar explicar tudo isso para as
cunhadas - sem qualquer demérito a estas - seria uma missão impossível. Tem
coisas que só quem sente na pele e vê com o coração compreende.
Eis que, de súbito, ficamos todos privados de
tanta felicidade. Uma pandemia tirou nosso chão e reduziu nossas sessões
presenciais a encontros virtuais informais. Foi um balde de água fria jogado
pelo universo. As motivações disso tudo suplantam a nossa capacidade
imediatista de razão e reflexão.
Sofremos, agora, de abstinência. Tal como
"O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry, a distância e a
saudade "do nosso planetinha de antes" traz a medida mais precisa do
real valor e importância do que tínhamos na mão, de forma graciosa e ordinária.
O principezinho da literatura (infantil,
dizem alguns com desdém) resolveu abandonar seu asteroide, que era pouco maior
do que ele próprio, onde sua vida era tratar dos três vulcões (um deles
extinto), arrancar os baobás (plantas más, que podiam perfurar o planetinha com
suas enormes raízes) e tratar de sua única e vaidosa flor. Mas talvez possamos
aprender a enfrentar nossa crise real, com as lições da viagem interplanetária
daquele simpático personagem mirim.
A raposa ensinou ao Pequeno Príncipe que para
cativar alguém é preciso ritos. Explicou que "se tu vens, por exemplo, às
quatro da tarde, desde às três eu começo a ser feliz. Quanto mais a hora for
chegando, mais eu me sentirei feliz. As quatro horas, então, estarei inquieta e
agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento,
nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos." Quem sabe
seja essa a explicação da batedeira no peito, desde a manhã, nos dias das
ritualísticas em nossas Lojas. É o nosso coração preparando-se para ser
cativado!
O Principezinho, antes descontente com sua
única rosa, abandonou seu pequeno planeta e, tendo visitado outros, encontrou
na Terra um jardim com milhares delas. Percebeu, então, a diferença entre a
unidade que cuidava com o coração e o que, agora, lhe aparecia em abundância
diante dos olhos. Após constatar que os homens, mesmo cultivando aquele jardim
com cinco mil rosas, não achavam o que procuravam, arrematou: "Mas os
olhos são cegos. É preciso buscar com o coração..." Realmente nossa
fraternidade Maçônica extrapola à cegueira dos olhos. A entrega viabilizada
pelos dotes do coração - faz com que um conjunto de pessoas, princípios e ritos
tornem-se uma unidade coesa, um bem comum de valor inestimável. Assim agem os Maçons:
enxergam com o coração!
O Pequeno Príncipe, decidido a voltar ao seu
planetinha e a rever sua flor, valeu-se da promessa e do veneno serpente,
justificando ao seu novo amigo da Terra suas razões: "Tu compreendes. É
longe demais. Eu não posso carregar esse corpo. É muito pesado". Mas,
alegremo-nos. De nossa parte, o retorno dar-se-á de modo diverso, menos penoso,
recheado de alegria e sob as bênçãos de São João, nosso Padroeiro.
Difícil saber se tamanha coragem do
Principezinho rendeu-lhe, mesmo, o esperado retorno ao seu lar distante. Isso,
na verdade, depende da fé e da imaginação de cada leitor. O fato é que nosso
regresso maçônico aos Templos e esse sim virá - será breve, feliz e
potencializado pela saudade.
E, para o reencontro vindouro, lembremo-nos da
lição dada pela raposa ao Pequeno Principe: "Eis o meu segredo. É muito
simples: só se vê bem como o coração. O essencial é invisível para os
olhos".
Referências SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O
Pequeno Príncipe. 9'' ed., Rio de Janeiro: Agir, 1962. p. 71.
Op. Cit., p. 83.
Op. Cit., p. 91.
Op. Cit., p. 74.
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