Síndrome de Pequeno Príncipe


Por Marcelo Chaim Chohfi (*)

Ai que saudades das terças-feiras de antes. Dia de sessão na Loja, só à noite, mas o coração mostra-se diferente logo pela manhã. Para uns, mera ansiedade; para outros, chega a dar uma aceleração no peito, estilo motor de Fiat 147 aquecendo com o afogador puxado. A cunhada, diante da inquietação do marido - que se repete britanicamente no mesmo dia da semana - não perde a oportunidade de cutucar o coitado: "O que que tem lá de tão bom, assim? Nunca vi, toda terça você fica que nem pinto no lixo!"

Hora de engolir o sapo, conter a agitação e tocar em frente, aguardando o fraternal e caloroso reencontro com os Irmãos. Afinal, sequer seria possível tentar traduzir, em palavras, tantos e tão intensos momentos de alegria da alma. Antes da sessão, cumprimentar os Irmãos é algo simplesmente especial. O sorriso no rosto de cada um é contagiante e afasta qualquer agrura externa. É o abraço de urso dado pelo gigante (de coração maior ainda), que te faz tirar os pés do chão, literalmente. É a mesma piada, feita pelo pândego de sempre, indagando se o Irmão com balandrau amassado tirou o traje da garrafinha de Coca-Cola. É o ósculo respeitoso distribuído, sem miséria, em sinal de paz e fraternidade. É o Mestre de Cerimônias fazendo mágica para organizar a sessão nos mínimos detalhes, inclusive pegando de supetão os novos Mestres, para que debutem em cargo de efetivo trabalho ritualístico. É a conversa com o decano da Loja, que sempre chega antes de todos e tem na manga várias histórias das boas para compartilhar com entusiasmo. É o burburinho da sala dos passos perdidos, quando já se amontoam os Irmãos paramentados que, a essa altura, já não dão conta de saudar um a um, mas não deixam de fazê-lo com os olhos e com um leve curvar de cabeça, dando o recado de que, no ágape, o abraço e o papo serão certos. É, enfim, a vă tentativa de silenciar a emoção dos últimos conversadores do fundão, para viabilizar a entrada no Templo. Vai explicar tudo isso...

Durante a sessão, muda o clima, intensifica-se a emoção e a recompensa da alma vem em doses cavalares. O Mestre de Harmonia escolhe, sem dó nem piedade, a batida melódica certa para a transcendência do pensamento, de forma ritmada com os passos da marcha de entrada. O piso mosaico hipnotiza. A abóbada celeste nos conduz à imensidão do universo, de forma distante dos limites materiais da vida profana. É possível visualizar as energias dos Irmãos convergindo para um centro comum de vibração, que retroalimenta a todos em tempo real. Com a leitura do Livro da Lei, a voz única do Irmão Orador ganha penetração espiritualizada e cala fundo no semblante daquela assembleia de Maçons. E por aí segue a nossa montanha russa de emoções.

Quando a ritualística acaba, a sensação é de que todas as energias foram restabelecidas. Lembra o River Raid, do antigo Atari, quando conseguimos percorrer toda a fase do jogo em nosso aviãozinho, atirando nas adversidades (navios, helicópteros, etc.) e, ainda assim, saímos com o tanque cheio, dado o aproveitamento de todos os pontos de "fuel".

O ágape, organizado carinhosamente pelo Mestre de Banquete, poderia sugerir o fim dos trabalhos daquele dia. Ledo engano! Come-se e bebe-se bem, sem dúvida! Isso, porém, é apenas o cenário que dá azo a uma ebulição da fraternidade, troca de conhecimentos, conversas sobre amenidades, trabalho, família e a própria Ordem.

Realmente, tentar explicar tudo isso para as cunhadas - sem qualquer demérito a estas - seria uma missão impossível. Tem coisas que só quem sente na pele e vê com o coração compreende.

Eis que, de súbito, ficamos todos privados de tanta felicidade. Uma pandemia tirou nosso chão e reduziu nossas sessões presenciais a encontros virtuais informais. Foi um balde de água fria jogado pelo universo. As motivações disso tudo suplantam a nossa capacidade imediatista de razão e reflexão.

Sofremos, agora, de abstinência. Tal como "O Pequeno Príncipe", de Antoine de Saint-Exupéry, a distância e a saudade "do nosso planetinha de antes" traz a medida mais precisa do real valor e importância do que tínhamos na mão, de forma graciosa e ordinária.

O principezinho da literatura (infantil, dizem alguns com desdém) resolveu abandonar seu asteroide, que era pouco maior do que ele próprio, onde sua vida era tratar dos três vulcões (um deles extinto), arrancar os baobás (plantas más, que podiam perfurar o planetinha com suas enormes raízes) e tratar de sua única e vaidosa flor. Mas talvez possamos aprender a enfrentar nossa crise real, com as lições da viagem interplanetária daquele simpático personagem mirim.

A raposa ensinou ao Pequeno Príncipe que para cativar alguém é preciso ritos. Explicou que "se tu vens, por exemplo, às quatro da tarde, desde às três eu começo a ser feliz. Quanto mais a hora for chegando, mais eu me sentirei feliz. As quatro horas, então, estarei inquieta e agitada: descobrirei o preço da felicidade! Mas se tu vens a qualquer momento, nunca saberei a hora de preparar o coração... É preciso ritos." Quem sabe seja essa a explicação da batedeira no peito, desde a manhã, nos dias das ritualísticas em nossas Lojas. É o nosso coração preparando-se para ser cativado!

O Principezinho, antes descontente com sua única rosa, abandonou seu pequeno planeta e, tendo visitado outros, encontrou na Terra um jardim com milhares delas. Percebeu, então, a diferença entre a unidade que cuidava com o coração e o que, agora, lhe aparecia em abundância diante dos olhos. Após constatar que os homens, mesmo cultivando aquele jardim com cinco mil rosas, não achavam o que procuravam, arrematou: "Mas os olhos são cegos. É preciso buscar com o coração..." Realmente nossa fraternidade Maçônica extrapola à cegueira dos olhos. A entrega viabilizada pelos dotes do coração - faz com que um conjunto de pessoas, princípios e ritos tornem-se uma unidade coesa, um bem comum de valor inestimável. Assim agem os Maçons: enxergam com o coração!

O Pequeno Príncipe, decidido a voltar ao seu planetinha e a rever sua flor, valeu-se da promessa e do veneno serpente, justificando ao seu novo amigo da Terra suas razões: "Tu compreendes. É longe demais. Eu não posso carregar esse corpo. É muito pesado". Mas, alegremo-nos. De nossa parte, o retorno dar-se-á de modo diverso, menos penoso, recheado de alegria e sob as bênçãos de São João, nosso Padroeiro.

Difícil saber se tamanha coragem do Principezinho rendeu-lhe, mesmo, o esperado retorno ao seu lar distante. Isso, na verdade, depende da fé e da imaginação de cada leitor. O fato é que nosso regresso maçônico aos Templos e esse sim virá - será breve, feliz e potencializado pela saudade.

E, para o reencontro vindouro, lembremo-nos da lição dada pela raposa ao Pequeno Principe: "Eis o meu segredo. É muito simples: só se vê bem como o coração. O essencial é invisível para os olhos".

 (*) Marcelo Chaim Chohfi é membro da Academia Campinense Maçônic de Letraas, Cadeira nº 31 - Patrono: José Bonifácio de Andrada e Silva

 Fonte: Revista O Pensador

Referências SAINT-EXUPÉRY, Antoine de. O Pequeno Príncipe. 9'' ed., Rio de Janeiro: Agir, 1962. p. 71.

Op. Cit., p. 83.

Op. Cit., p. 91.

Op. Cit., p. 74.

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