A Intermitência Dos Pensamentos



Por Hilquias Scardua

Na rodovia, quando estava a caminho de São Paulo, fiz muitas reflexões. Juntei alguns recortes de pensamentos e, alguns dias depois, agora retornando ao Espírito Santo, resolvi organizar esses pensamentos em uma reflexão. Convido-os a refletir comigo.

Em um dos momentos, à noite, via o final da estrada se fundir com o negro céu. Lá no fim, tudo parecia uma só coisa, tanto a estrada com os seus catadióptricos que riscavam o destino, quanto as estrelas vibrantes que cintilavam evidentes na escuridão.

Pude considerar a limitação da vista ao espetáculo à frente. A luz interior servia de condução segura e nada poderia fazer além de ministrar a lucidez de seguir atento aos trechos e curvas.

Como copiloto, era mais fácil apreciar a paisagem, mesmo em meio ao trajeto noturno, que nas laterais passava sem definição.

Como de costume, os ouvidos se deleitavam ouvindo uma composição operística em Sol maior. Uma condição propícia à interiorização e uma análise segura dos pensamentos.

Contudo, a ilustração acima, da avenida e o céu se fundindo no horizonte, é o ponto elementar da reflexão.

O pensamento como gozo vai muito além do prazer, sem a condição ilusória e hedonista que há muito nos condiciona. Para isso, incluo na reflexão o pensamento de Lacan.

Lacan, no Seminário Livro VII, oferece uma crítica da noção de prazer, remetendo-se a Freud e Aristóteles, para explorar o conceito de gozo. O prazer, segundo Lacan, está ligado à negatividade e à falta, enquanto o gozo transgride esses limites e se associa ao Real, um campo fora do imaginário e do simbólico. Essa busca incessante pelo gozo pode levar à perversão, tentando preencher o vazio deixado pela "Coisa" (das Ding), um objeto inacessível na experiência subjetiva.

Lacan recorre à ética aristotélica, que distingue entre prazeres verdadeiros e falsos. Enquanto Aristóteles vê o prazer como complemento da atividade virtuosa, Lacan subverte essa visão, mostrando que o prazer é sempre superado pelo gozo. Na psicanálise, o prazer é parcial e insatisfatório, preso na ordem simbólica e incapaz de atingir a plenitude do gozo.

Lacan propõe uma ética da psicanálise que se baseia no enfrentamento da negatividade e na aceitação do Real como um limite intransponível. A verdadeira realização está em reconhecer e trabalhar com os limites do prazer, ao invés de buscar constantemente sua transgressão.

O prazer e o gozo se confundem na análise simples do olhar noturno e limitado que temos. Mas atentamos à necessidade de provocar o pensamento não por prazer, mas pelo simples juízo de fazê-lo, mesmo que em vãos pensamentos nunca se alcance o gozo assistido.

A reflexão é uma ferramenta do pensamento junto ao gozo. É nesse instante que mora a intermitência, o momento profícuo do juízo entre as coisas. A coisa inalcançável que é a Verdade se vê assistida e temporariamente validada pelo pensamento.

Temos aí o sentido que buscamos, quando a lúgubre paisagem nos faz confundir, criando a ilusão à nossa frente.

Vamos além, para além do prazer, buscar o inalcançável; mas sempre prezando pelo prazer e gozo de permanecermos entre as verdades que cultivamos.

Jacaraípe, 29 de Junho de 2024.

Hilquias Scardua - Cavaleiro Rosa-Cruz



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