Por Marco Rocchi
“Um
maçom é obrigado, por sua condição, a obedecer à lei moral; e se ele
compreender a Arte corretamente, nunca será um ateu estúpido nem um libertino
irreligioso”.
Quero iniciar estas breves considerações com
uma premissa metodológica. O que vou dizer não tem pretensão de verdade
absoluta, mas é antes fruto de uma reflexão aberta - no sentido de estar livre
de preconceitos - sobre algumas palavras que Anderson escreveu nas suas
Constituições de 1723.
É uma premissa necessária, porque acredito
que devemos questionar os símbolos sem ficarmos presos a posições
pré-estabelecidas, mesmo que apoiados pela opinião autorizada de muitos Irmãos
que nos precederam. Os símbolos continuarão a falar conosco até que quereremos
questioná-los com a mente aberta (gosto sempre de recordar a este respeito as
palavras de Gustav Mahler: “Seguir a tradição não é adorar as cinzas, mas
manter viva a chama”). Quando um símbolo é codificado sem qualquer
possibilidade de interpretação, ele efetivamente morre como tal, perdendo toda
a sua capacidade evocativa, para se tornar o que os semiólogos chamam
simplesmente de sinal.
E as palavras de Anderson, para as quais
voltei minha reflexão, são, além de palavras, símbolos. Cada palavra, examinada
mais de perto, é um símbolo, como um significante que se refere a um
significado. Quanto mais a palavra é um símbolo, mais ela se inspira num mundo
que, como o da Maçonaria, faz do símbolo um instrumento de conhecimento e
transmissão do pensamento iniciático.
Entro, portanto, no cerne da minha reflexão
sobre as palavras de Anderson: “Se ele compreender bem a arte, nunca será um
ateu estúpido, nem um libertino irreligioso”.
o que essas palavras significam? Comecemos
pela primeira parte, aquela que se refere ao ateísmo. A vulgata atual está
principalmente inclinada a acreditar que esta parte da declaração significa a
impossibilidade de admitir ateus em nossa Instituição, como demonstrado pelo
fato de que entre os requisitos para levar em consideração um leigo está a sua
declaração de "crença em um Ser Supremo".
Já se poderia argumentar, num nível
estritamente lógico, que a afirmação (que simplifico aqui) “quem entende de
arte não será ateu” não é equivalente – isto é, não é equivalente em significado
– à afirmação “quem é um ateu não entenderá arte".
Esta última afirmação implicaria como
consequência imediata que não vale a pena admitir ateus na Maçonaria, pois eles
não serão capazes de compreender a arte. A primeira, porém, permite vislumbrar
a possibilidade de admissão dos ateus, pois a compreensão da arte os levará à
rejeição do ateísmo. Mas isso poderia facilmente ser classificado como conversa
lógica.
Talvez uma pista capaz de resolver o enigma
esteja nesse atributo – “estúpido” – que até agora negligenciamos. Penso que
nas Constituições, assim como nos Antigos Deveres (bem como nos nossos
Rituais), poucas palavras são ditas ao acaso, sem uma reflexão cuidadosa.
Refiro-me precisamente ao termo “estúpido” que acompanha a palavra “ateu”.
Existem duas possibilidades de interpretação desta palavra. Poderia ser uma
coloração, correspondente ao que nós em português pronunciaríamos como “um ateu
estúpido”, significando que um ateu é necessariamente estúpido e, portanto,
merece necessariamente este epíteto.
Ou, e estou inclinado a inclinar-me para esta
interpretação, a palavra estúpido define mais claramente que tipo de ateu não
será capaz de se tornar aquele que entende a Arte. Ou seja, equivaleria a
dizer: “se ele entende bem a Arte, pode ser ateu, mas nunca um ateu estúpido”.
Isto é, e esta ainda é a minha interpretação, ele poderia se tornar um ateu,
sim, mas consciente; isto é, um ateu que se torna tal no final de uma jornada
de pesquisa que é realizada (pelo menos temporariamente, como todas as verdadeiras
viagens de pesquisa), no reconhecimento da ausência de um deus. Não um ateu
preconceituoso, portanto, não um ateu por moda, não um ateu por dogma
filosófico, mas um ateu que se tornou tal após profunda pesquisa e meditação.
Em suma, não é um ateu estúpido.
Se aceitarmos estas premissas, perguntamo-nos
então o que representam dois símbolos como o GADU e o Livro da Lei Sagrada,
dentro de um discurso assim organizado.
Sempre pensei que o Grande Arquiteto do
Universo é um grande recipiente vazio (gosto muito de pensar nele como um
recipiente triangular), que podemos preencher da maneira que melhor se adequar
à nossa pesquisa pessoal. Muitos de nós iremos preenchê-lo com um deus da
tradição teísta (o Deus Trinitário cristão, o Javhe da tradição judaica, o Alá
islâmico)¹, outros com o deus dos deístas (o Grande Relojoeiro de Voltaire,
aquele que os filósofos neoplatônicos de Cambridge definia um proprietário de
terras ocioso, que após ter planejado e "carregado" o universo, fica
de lado observando seu brinquedo sem mais intervir no mundo com sua
providência), outros ainda com o deus dos panteístas, tão frágil em sua
natureza metafísica a ser considerado o último passo em direção ao ateísmo. E
então, por que evitar a priori que o recipiente do GADU não possa ser
preenchido com o nada do ateísmo, com o vazio de uma dimensão ateísta, enquanto
isso "nada" é o resultado de uma pesquisa? Se Deus, e com ele o GADU,
é a resposta que damos às nossas questões mais eternas e arquetípicas, se
representa a nossa tentativa de compreender a ordem do 'Universo, o que impede
que a resposta a estas perguntas e a estas tentativas seja a ausência de Deus?
Uma resposta que certamente não será definitiva, mas encontrando-se - sob este
aspecto - nas mesmas condições das respostas formuladas por aqueles que deram
um resultado teísta às suas próprias solicitações. Mas o que é esse temido
ateísmo? Se Deus "nada mais é do que um discurso metafísico sobre as
causas e origens do mundo", então o verdadeiro ateu é "um homem que
passa a vida falando de Deus", talvez com mais assiduidade - e mais
desesperadamente - do que um crente. Tanto é verdade que se poderia dizer a
alguém que “só será um verdadeiro Ateu aquele que ama profundamente a Deus”, ou
seja, o Deus da pesquisa metafísica, e não o Deus das religiões reveladas² E o
Livro da Lei Sagrada acredito nisso - como a Equipe e a da Lei Sagrada.
Bússola, com a qual forma o trio das Grandes Luzes, é um símbolo (como também é
indiretamente indicado pelo fato de que se pode usar, dependendo das filiações
do Irmão, tanto a Bíblia Cristã como a Hebraica, assim como o Alcorão e assim
por diante): o Livro da Lei Sagrada é então talvez apenas o símbolo da
tentativa do Homem de estabelecer contato com a dimensão do Sagrado, como se
dissesse que aquele Livro é Sagrado apenas pelo valor que "nós " atribuímos
à busca do Sagrado que gira em torno desse livro.
Provocativamente, eu proporia trabalhar pelo
menos uma vez, substituindo a Bíblia pelos Principia Mathematica de Newton.
Acredito que poucos livros sejam tão sagrados como este (no sentido simbólico
que acabei de dizer, claro): é sagrado porque é talvez a tentativa mais elevada
de um homem para “decifrar o criptograma do Todo-Poderoso”. Por outro lado, como
nos lembra Voltaire: “o catequista anuncia Deus às crianças, Newton prova-o aos
sábios”.
E é por isso que alguns chegam ao ponto de
usar, em vez do Livro Sagrado, um livro em branco (ou mesmo uma simples folha
em branco): representa a nossa atual incapacidade de compreensão, mas o nosso
compromisso de nunca abandonar a investigação. Esse livro branco é então tão
sagrado quanto a Bíblia, porque simbolicamente - assim como a Bíblia - é o
símbolo do nosso desejo de nos colocarmos em conexão com a dimensão do Sagrado,
seja qual for a “face” que ele tenha.
E passo agora para a segunda parte, aquela
que afirma que “se ele entender bem a arte nunca será um libertino
irreligioso”. As mesmas considerações lógicas e gerais já feitas para a outra
afirmação aplicam-se a esta afirmação e, portanto, não as repetirei aqui.
Quero apenas sublinhar que o termo libertino,
que hoje usamos como uma variante um pouco menos ofensiva do termo “depravado”,
especialmente se pronunciado no século XVIII, tinha um significado muito
diferente. O libertinismo foi uma corrente filosófica muito digna, embora pouco
sistemática, que tinha como mínimo denominador comum a exaltação da liberdade
em todos os campos, como o bem supremo do Homem; uma liberdade que os
libertinos também exerciam na esfera sexual (daí a combinação
libertino-depravado que passou a ser de uso comum), acreditando que toda
liberdade que surge como resultado de uma pulsão natural não pode ofender a
Deus, mas antes concretizar a sua vontade.
É difícil pensar que o objetivo fosse evitar
a filiação à Maçonaria de filósofos e pensadores libertinos, que de fato
enriqueceram as colunas das Lojas (aqui quero lembrar o Irmão Giacomo Casanova,
muitas vezes lembrado como um libertino em sentido inferior, mas que na
realidade tinha um valor que era tudo menos insignificante como adepto da
libertinagem filosófica).
Mesmo neste caso, portanto, talvez seja o
atributo associado ao termo “libertino” que pode vir em nosso auxílio. Anderson
não diz que se entender de arte não será um libertino, mas que não será um
libertino irreligioso. Apesar de saber que é difícil investigar o que Anderson
quis dizer, para mim o termo sugere uma análise precisa, baseada na própria
etimologia da palavra religião.
O termo latino religio provavelmente deriva de
re-ligare, ou seja, unir, unir, criar vínculos. Assim, nesta perspectiva, o
libertino irreligioso aparece como um libertino sem restrições, capaz de levar
a sua profanação ao ponto do niilismo. Mais uma vez, é o libertino privado de
algo que limita a tendência ao individualismo e ao culto da liberdade levado a
consequências extremas. Porque a liberdade ilimitada entra em conflito com a
igualdade, e estes dois princípios que nos são tão caros acabam por entrar em
conflito entre si. A solução para o conflito entre liberdade e igualdade pode
ser (e normalmente é) resolvida através da legislação, com a introdução de leis
que limitem a liberdade de todos em nome da igualdade (princípio que está na
base do Contrato Social de Rousseau). Mas o trio de princípios maçónicos de
liberdade-igualdade-fraternidade indica um caminho alternativo, no qual o
maçom, livremente apoiado por este espírito de amor/fraternidade dá
(espontaneamente e não coercitivamente) um passo atrás para limitar a sua
própria liberdade em favor daquela do Irmão. É, portanto, uma renúncia
espontânea e não imposta por lei.
Em suma, Anderson parece dizer-nos, liberdade
sim, mas nunca separada daqueles laços de amor fraternal a que parece
referir-se quando introduz o conceito de religiosidade.
Quase para sublinhar o meu pensamento, quero
concluir com as palavras das Constituições, lendo a parte final do artigo I
(aquele que segue imediatamente a afirmação que aqui discuti): “Mas embora nos
tempos antigos os maçons fossem obrigados em todos país ser da religião desse
país ou nação, qualquer que fosse, hoje considera-se mais conveniente apenas
obrigá-los àquela Religião em que todos os homens concordam, deixando-lhes as
suas opiniões particulares; isto é, serem homens bons e leais ou homens de
honra e honestidade, quaisquer que sejam as denominações ou confissões que
sirvam para distingui-los; através do qual a Maçonaria se torna o centro da
união e o meio para estabelecer uma amizade sincera entre pessoas que teriam
permanecido eternamente estranhas”.
Fonte: Revista Acácia
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