Anticlericalismo Maçônico no Brasil Oitocentista: Entre a Imprensa Ímpia e a Defesa da Civilização

Da Redação

A segunda metade do século XIX no Brasil foi marcada por intensas disputas ideológicas entre os defensores do catolicismo ultramontano e setores que pregavam a separação entre Igreja e Estado. Nesse cenário de tensões, a Maçonaria brasileira assumiu papel de protagonismo, especialmente durante a chamada Questão Religiosa (1872–1875), momento em que a imprensa maçônica se opôs duramente ao clero católico por meio de uma retórica combativa, embora profundamente enraizada na tradição religiosa cristã.

A Maçonaria como Agente da Modernidade

Enquanto o catolicismo ultramontano defendia a centralização do poder espiritual em Roma e a infalibilidade papal, os discursos maçônicos valorizavam a liberdade de consciência, a racionalidade ilustrada e a pluralidade religiosa. Embora oficialmente não se declarassem anticlericais, os maçons combatiam aquilo que consideravam abusos da Igreja, sobretudo sua ingerência nos assuntos civis e sua tentativa de moldar o Estado brasileiro segundo os princípios do Syllabus de Pio IX.

Por meio de veículos como o Boletim do Grande Oriente do Brazil e o Boletim do Grande Oriente Unido e Supremo Conselho do Brazil, editados no Rio de Janeiro, lideranças maçônicas divulgaram críticas duras ao "despotismo clerical" e ao que chamavam de "seita ultramontana", identificando a Igreja não como inimiga da fé, mas como usurpadora da espiritualidade em nome do poder político.

Um Anticlericalismo Católico?

O paradoxo do discurso maçônico é evidente: ao mesmo tempo em que se posicionava contra o clericalismo, a Maçonaria buscava reafirmar suas raízes cristãs, declarando-se herdeira da moral evangélica e defensora dos verdadeiros valores do cristianismo. Essa ambiguidade levou os pesquisadores Ana Rosa Cloclet da Silva e Leonardo Henrique de Souza Silva a cunharem o termo “anticlericalismo católico” para descrever esse fenômeno singular.

Nas páginas dos jornais maçônicos, exaltava-se a figura de Jesus, invocava-se Maria como modelo de virtude, e clamava-se pela preservação da fé — desde que separada da estrutura de poder clerical que, segundo os redatores, havia traído o espírito da religião ao submeter-se a ambições políticas.

Discurso e Estratégia na Guerra de Ideias

O combate ao ultramontanismo fez uso de uma retórica que espelhava a da própria Igreja. Os maçons adotaram um tom escatológico, apocalíptico, descrevendo sua luta como uma “guerra entre a luz da civilização e as trevas da ignorância clerical”. Curiosamente, conceitos como “seita”, geralmente usados pela Igreja contra os maçons, foram reapropriados para definir o catolicismo ultramontano, numa inversão semântica típica das guerras ideológicas.

Mais do que mera retórica, tratava-se de uma estratégia discursiva. Os periódicos maçônicos funcionavam como espaços pedagógicos, voltados à formação de uma nova consciência pública, onde os leitores eram convidados a combater o obscurantismo clerical e abraçar os ideais do progresso e da civilização moderna.

Uma Maçonaria Cautelosa

Apesar do tom agressivo, os discursos maçônicos evitavam uma ruptura total com o Estado e com o catolicismo enquanto religião nacional. Afinal, muitos maçons eram católicos praticantes e a própria Maçonaria brasileira havia sido forjada em íntima conexão com o Império. A crítica era dirigida ao poder eclesiástico romano, não à religiosidade em si. Tal posição era estratégica: ao evitar se apresentar como inimiga da fé, a Maçonaria podia continuar influenciando o cenário político e cultural sem perder legitimidade entre a população majoritariamente católica.

Um Conceito Importado?

A análise de Cloclet da Silva e Souza Silva sugere que o termo "anticlericalismo", tal como entendido no contexto europeu, foi mais uma construção discursiva da imprensa ultramontana do que uma autodefinição maçônica. Os maçons brasileiros, ao menos até a República, raramente usaram esse termo para se autodefinir. Seu combate era dirigido a um modelo específico de Igreja, não à religião em si.

Mesmo assim, o conteúdo de seus discursos e a intensidade da oposição ao clero romano revelam, sim, uma postura que pode ser lida como anticlerical — embora profundamente embebida em símbolos e valores religiosos. Trata-se de um anticlericalismo singular, enraizado em um campo semântico compartilhado com o catolicismo, e que, mais do que rejeitar a fé, buscava reformular a relação entre religião, política e sociedade.

 

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