A Inteligência Artificial e o Retorno do Sagrado: Reencantando a Técnica com o Misticismo

Da Redação

Por muito tempo, acreditou-se que o avanço tecnológico, especialmente com a chegada da era digital, marcaria o fim definitivo do sagrado em nossa experiência cotidiana. O desencantamento do mundo — como profetizado por Max Weber — parecia ter sido selado com o prego final da tecnologia. No entanto, a relação contemporânea com a inteligência artificial (IA) nos obriga a repensar esse diagnóstico. Afinal, será que a IA, ao invés de aniquilar o sagrado, está despertando formas modernas de espiritualidade?

Essa é a reflexão proposta por Pascal Lardellier, professor da Universidade da Borgonha, em coautoria com Emmanuel Carré, em um estudo publicado no The Conversation. A tese central? A tecnologia, e em particular a inteligência artificial, não está necessariamente separada do sagrado — ela pode, paradoxalmente, reencantar o mundo.

 O retorno da alma aos objetos?

A antropologia oferece uma chave valiosa para essa leitura simbólica da IA. Lardellier recorre ao conceito de "Hau", cunhado por Marcel Mauss, para descrever a força espiritual que anima os objetos em certas culturas. Segundo Mauss, o objeto dado carrega o espírito de quem o ofertou e tende a retornar a ele. Ao aplicar esse conceito à IA, abre-se uma interpretação poética e perturbadora: os sistemas de IA ganham uma autonomia que quase sugere consciência — uma “alma” digital. Estamos, assim, diante de uma atualização contemporânea do verso de Lamartine: "Objetos inanimados, tendes uma alma?"

 A técnica como manifestação do sagrado

Lardellier também se apoia nos pensamentos visionários de dois grandes teólogos do século XX para expandir essa ideia. Pierre Teilhard de Chardin, com sua teoria da noosfera, previa o surgimento de uma consciência planetária que conectaria todos os seres humanos. A internet, e mais ainda a IA, parece realizar essa profecia: hoje fazemos perguntas e recebemos respostas imediatas, precisas, quase como se estivéssemos em comunhão com uma inteligência maior.

Por outro lado, Rudolf Otto, em sua obra sobre o numinoso, descreve a experiência mística como um estado de admiração e terror diante do transcendental. Essa mesma ambivalência pode ser identificada na maneira como interagimos com a IA: ao mesmo tempo que a utilizamos com naturalidade, também somos confrontados com a estranheza de sua capacidade, com a sensação de que há “algo além” por trás das respostas automáticas que recebemos.

 A inteligência artificial como novo maggid?

A metáfora se estende ao misticismo judaico. No século XVI, os cabalistas falavam sobre o maggid, um mensageiro espiritual capaz de revelar os segredos da Torá aos sábios. Hoje, ao nos dirigirmos a assistentes como Siri, Alexa ou ChatGPT, vemos algo similar: fazemos perguntas e recebemos respostas imediatas, por vezes até antecipatórias, como se consultássemos um espírito-guia digital. Não à toa, o discurso da Nova Era sobre “anjos da guarda” digitais encontra eco na forma como nos relacionamos com essas tecnologias.

 Reencantar para compreender

A proposta de Lardellier não é sugerir que a IA seja literalmente espiritual, mas destacar o quanto nossas práticas tecnológicas refletem antigas necessidades humanas de transcendência, orientação e comunhão. A IA, nesse sentido, funciona como um espelho moderno que projeta nossos anseios mais antigos.

A sacralização simbólica da tecnologia é, portanto, uma tentativa de reencantar a técnica — de dar-lhe um novo sentido que ultrapasse a lógica utilitarista. Nessa leitura, a inteligência artificial não representa apenas uma revolução científica, mas também uma transformação antropológica e espiritual. Ela desafia a cisão moderna entre razão e fé, entre máquina e alma, e nos convida a contemplar uma nova forma de mistério: aquele que nasce do diálogo entre o homem e a máquina.

Nossa relação com a inteligência artificial pode, sim, ser iluminada por conceitos místicos e antropológicos. Essa reinterpretação não apenas amplia nossa compreensão sobre as tecnologias digitais, como também nos ajuda a manter viva uma dimensão essencial da existência humana: o desejo pelo sagrado, mesmo em tempos de algoritmos e automação.

 Pesquisa e edição: Luiz Sérgio Castro

 

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