Uma revisão
dos principais fatores e algumas complementações necessárias
Com referência
àqueles fatores considerados mais importantes, os quais contribuíram para as
transformações na Maçonaria Operativa e supostamente responsáveis diretos pelas
mudanças que ocasionaram o surgimento da Maçonaria Especulativa, cabem ainda
algumas complementações:
A aceitação de
indivíduos que não eram pedreiros, mas profissionais liberais, nobres, adeptos
da filosofia natural, entre outros, que acabaram influenciando e transformando
definitivamente a natureza da Maçonaria, até então formada de homens dedicados
à arte da construção de edifícios, templos, catedrais e fortificações.
No entanto, o
francês Alec Mellor, que foi um grande estudioso da Maçonaria, reportando-se ao
assunto dos “aceitos”, deixa uma pergunta no ar:
“Que a Maçonaria
tenha terminado por ser formada oficialmente por membros ‘aceitos’ não nos
explica por que motivos ela se tornou ‘especulativa’. Quantas associações,
desde a época das Guildas, praticaram do mesmo modo a concessão da dignidade
honorária sem, por isso, terem o mesmo destino?” (Mellor, 1989, pág. 14)
A criação da Royal
Society, uma sociedade voltada para a ciência, fortemente influenciada pelo
Iluminismo, e que contava entre os seus membros com vários Maçons. Além de
reunir indivíduos para o estudo da ciência, essa sociedade era capaz de manter
ainda um interesse também pela Alquimia, pelo Hermetismo, pelo Rosacrucianismo
(24), o que, de certa forma, acabou gerando reflexos ou influenciando no
cadinho primordial das ideias que levaram à criação e à formação da Maçonaria
Especulativa.
Talvez os maiores
expoentes dessa relação da ciência com o hermetismo tenham sido Francis Bacon e
Isaac Newton, mas até agora ninguém conseguiu comprovar se algum deles era
Maçom. Levando em conta, então, esta última condição, um dos nomes que mais se
destacaram nesse cenário foi o de John Theophilus Desaguliers, tanto que o
Ir.’. Alain Bauer descreveu-o assim:
“Curador das
experimentações da Royal Society a partir de sua eleição. Desaguliers aparece
como do deus ex-machina da criação da Franco-Maçonaria Especulativa. Se a
Franco-Maçonaria fosse uma religião, Newton seria o Cristo mediador e
Desaguliers, o seu Profeta. Personagem cuja vida testemunha todos os rasgos
religiosos, assim como todos os debates intelectuais da Europa do fim do século
XVII, Desaguliers expressa, principalmente por suas origens, valores
reencontrados naturalmente nas fontes da Maçonaria Especulativa inglesa, em
Londres na década de 1720.” (Bauer, 2008, pág. 71)
Mas não podemos
esquecer de Elias Ashmole, descrito assim pelo Ir.’. Alain Bauer:
“Elias Ashmole,
nascido em 1617 em Lichfield, é um personagem emblemático desses Antiquários e
o elo que os liga à Franco-Maçonaria nascente. Autor de trabalhos de erudição
histórica, que fazem época, físico e astrólogo, ele é também autor de textos
alquímicos e um colecionador apaixonado.” (Bauer, 2008, pág. 45)
A reconstrução de
Londres após o grande incêndio, que, na visão de alguns estudiosos, deu à
Maçonaria uma espécie de sobrevida, já que durante esse período a atuação dos
Maçons foi fundamental para as lojas também.
E não faltaram
teorias curiosas e suposições numa ligação com a reconstrução de Londres, que,
como já sabemos, foi conduzida por um Maçom e membro da Royal Society, Sir
Christopher Wren. A título de exemplo, transcrevemos a que foi colocada pelo
Ir.’. Bauer em seu livro:
“Em sua obra The
New Jerusalem, Rebuilding London: The Great Fire, Christopher Wren and the
Royal Society (A Nova Jerusalém, Reconstruindo Londres: O Grande Incêndio,
Christopher Wren e a Royal Society), Adrian Gilbert coloca em cena, de maneira
controversa, a reconstrução de Londres após a devastação de 1666 por um grupo
de membros da Royal Society, supostos franco-maçons, segundo uma teoria baseada
no Templo de Salomão. Durante a década de 1970, John Mitchell tentara a mesma
abordagem a respeito da construção da Abadia de Glastonbury em Somerset.”
(Bauer, 2008, pág. 54)
E ainda relacionada
ao episódio da reconstrução, podemos citar alguns trechos do artigo intitulado
“1717 – Um Mito?”, de autoria de Anders Omberg, que foi publicado nessa mesma
revista (vide O Malhete, edição nº 164, dezembro de 2022):
“Em 1666, Londres
queimou até o chão e, como resultado, houve um influxo de trabalhadores
irlandeses e escoceses que fizeram florescer a vida da loja em Londres.”
Já numa outra
passagem desse artigo, o autor escreveu assim:
“O que sabemos com
certeza é que, por volta de 1600, duas formas distintas de Maçonaria puderam
ser identificadas na Inglaterra e na Escócia, respectivamente. Na Inglaterra,
esta Maçonaria estava ligada às chamadas ‘Old Charges’, e na Escócia estava
ligada aos Estatutos de William Schaw.”
Obs.: A respeito das
“Old Charges”, favor consultar a Parte II desta série (O Malhete, nº
187). Sobre os “Estatutos de William Schaw”, a Parte V da série (O Malhete,
nº 191).
Agora, completando
as transcrições extraídas do artigo de Anders Omberg:
“Eram manuscritos, leis e regras que serviam para regular o que podemos chamar de grêmios de artesãos. Os detalhes rituais que cercam essas lojas maçônicas são amplamente desconhecidos da posteridade, mas está documentado que essa maçonaria se desenvolveu ao longo do século XVII e recrutou mais homens dos estratos sociais superiores da sociedade.”
COMENTÁRIOS:
Considerando o que
acabamos de ler logo acima, especialmente sobre a assertiva de que, por volta
do ano 1600, havia duas formas distintas de Maçonaria se projetando, é
aceitável supor que podemos ter chegado bem próximo à época que julgamos
adequada no sentido de apresentar um início plausível para a Maçonaria
Especulativa: a década de 1680 (citada ao final da Parte IX). No entanto, nada
nos impede de recuar até um pouco mais e situar a aurora da Maçonaria
Especulativa a partir da metade do século XVII.
Mas, antes que se
passassem as duas primeiras décadas do século seguinte, o XVIII, no ano de
1717, aí sim, oficialmente, disporíamos de um marco inicial para a Maçonaria
Especulativa, ou seja, por ocasião da fundação da Grande Loja de Londres.
A situação da
Maçonaria na Inglaterra no fim do século XVII e começo do século XVIII
Vejamos o seguinte
extrato retirado do artigo “Propósitos da Primeira Grande Loja de Londres”, da
autoria de Ailton Branco:
“...na história da
maçonaria mundial, a confraria na Inglaterra mostrava duas realidades
distintas: os maçons católicos, que faziam suas reuniões em locais cedidos pela
Igreja, e os maçons não católicos, que se reuniam em locais públicos, como
tavernas e hospedarias. As Lojas que reuniam Maçons cristãos obedeciam à
ritualística simples, organizada para as recepções aos candidatos e para as
trocas de grau. Eram lideradas pela pujante Loja de York. As lojas constituídas
por maçons judeus, muçulmanos e budistas, e que se reuniam em tavernas, eram
informais. As reuniões, em ágapes, destinavam-se às trocas de ideias variadas e
às relações sociais. A concorrência entre os dois segmentos da Maçonaria
britânica era acirrada, até com episódios de violência contra o patrimônio.”
Para que tenhamos
uma ideia mais abrangente sobre o período, vejamos na sequência a opinião
expressa pelo historiador e pesquisador Luiz Mario Ferreira Costa, em seu
artigo “A Maçonaria Operativa e Especulativa – Uma Discussão em Torno das
Origens da Ordem”, a qual está fundamentada na teoria do historiador britânico
David Stevenson (25):
“No início do século
XVIII, a Inglaterra assumiu a liderança no desenvolvimento da Maçonaria, mesmo
assim, a influência escocesa permaneceu muito forte. Para o autor, a fase
escocesa ou renascentista da Maçonaria – tanto na Escócia como na Inglaterra –
só foi superada quando valores iluministas foram incorporados ao movimento. Na
medida em que a ‘Idade da Razão’ alvorecia, a Maçonaria – nascida na Renascença
– era adaptada para se acomodar ao novo clima intelectual.”
E voltando outra vez
ao artigo de Ailton Branco, num outro trecho:
“Os intelectuais e
cientistas da Royal Society, dentre eles vários maçons, eram contra a
influência da Igreja, porque essa pregava a ideia do criacionismo para explicar
o surgimento do mundo. A Igreja apoiava sua posição nas teses dos filósofos
antigos, nas Sagradas Escrituras e na autoridade da fé e da santidade dos
padres. Os integrantes da Royal Society adotaram o lema ‘Nullius in Verba’
(26), para mostrar que acreditavam na verdade dos fatos, obtida através da
experiência científica e não ditada pela palavra de alguma autoridade.
Combatiam, também, a Escolástica (27), que era uma linha dentro da filosofia
medieval com elementos notadamente cristãos.”
Ora, depois das
influências do Iluminismo, começava a se formar uma Maçonaria que dava ênfase
para a razão e o conhecimento, e que deixava perceber objetivos bem maiores do
que apenas a construção, eis que seus membros agora se reuniam para promover
debates e, ao mesmo tempo, o crescimento pessoal e moral.
Esse estado de
espírito, essa fraternidade e tolerância, essa nova forma de pensar a
Maçonaria, que havia encontrado seu nascedouro praticamente no seio da Royal
Society, se estenderia e passaria a ser adotada por aqueles primeiros clubes
maçônicos de Londres.
A Maçonaria
foi inventada pelos escoceses do século XVI ou pelos londrinos em 1717?
Esta pergunta que
não quer calar, e que acaba vindo à tona cada vez que enveredamos pelos
caminhos da formação da Maçonaria Especulativa, foi citada pelo Ir.’. João Ivo
Girardi em seu artigo intitulado “A CHAVE ESCOCESA – Uma Investigação sobre
as Origens da Maçonaria – 2ª Parte”, e tem uma resposta dada pelo Ir.’.
John Hamill (28):
“Os escoceses
acreditam que ela começou lá, os ingleses que começou na Inglaterra.”
É uma discussão que
ainda não acabou. Em um artigo do Ir.’. Robert Hughs Montgomery, da Nova
Zelândia, ele chegou à seguinte conclusão:
“Até que evidências
documentais possam mostrar o contrário, a Maçonaria Especulativa deve agora ser
considerada uma consequência da publicação dos Estatutos de Schaw na Escócia em
1598 e 1599, não importando o quão desconfortável isso seja para os irmãos de
Londres.”
Uma outra opinião,
agora a do Maçom e estudioso francês Roger Dachez, vai de encontro à opinião
anterior, porém mais completa. Vejamos:
“A Escócia não
inventou a Maçonaria Especulativa. Ela criou, sob a liderança de William Schaw,
as estruturas de uma Maçonaria Operativa bem organizada, que servirá
indiscutivelmente de modelo para a Maçonaria Especulativa que se organizará no
início do século XVIII. Fez, especialmente, com que pedreiros não operativos,
que nunca tinham pertencido ao ofício, assegurassem que este frágil frasco
pudesse ser usado além da ‘fronteira do norte’ (Northern Border) e que,
colocando o pé em solo inglês, pudesse espalhar-se. Desse modo, pode-se
compreender por que a Maçonaria inglesa do século XVII é, ao mesmo tempo,
especulativa.”
Outros
fatores
O Ir.’. Girardi
finaliza o seu artigo da seguinte maneira:
“Muitos elementos
diferentes assim foram reunidos para criar a Maçonaria: os construtores
escoceses, os Antigos Deveres ingleses, o surgimento dos clubes londrinos, a
criação de organizações de ajuda mútua. Uma elite obcecada tanto pelas relações
interpessoais quanto pelo progresso científico. Todos esses fatores foram
reunidos e se fundiram para criar uma das partes mais fascinantes da história
humana. Uma história rica, sobre a qual as pesquisas estão apenas começando,
uma história que continua sendo escrita.” (Fonte: Documentário The Scottish
Key – An Investigation into the Origins of Freemasonry, NatGeo, 2009)
Nas palavras do
Ir.’. Alain Bauer, entre os anos de 1700 e 1717 essa Maçonaria se deparou com o
problema relativo à sua existência, em meio a um processo lento, porém de
maturação e de elaboração. (Bauer, 2008, pág. 15)
E ainda no
entendimento de Alain Bauer: todos os dados documentários relativos à Maçonaria
Especulativa foram se acumulando em um ritmo crescente no último trimestre do
século XVII, para atingir o seu auge no ato simbólico que constituiu a criação,
em 1717, da Grande Loja de Londres, assunto do nosso próximo capítulo.
CONTINUA...
NOTAS:
Rosacrucianismo (24): movimento espiritual e
cultural surgido na Europa moderna do início do século XVII após a publicação
de vários textos que anunciavam ao mundo uma nova ordem esotérica. Muitos
Maçons que se destacaram naquela época eram rosa-cruzes também.
David Stevenson (25): (1954 - ...) historiador
escocês, autor do livro “As Origens da Maçonaria: O Século Da Escócia
(1590-1710). Nesse livro, ele investiga sobre alguns dos mistérios que ainda
persistem com relação às origens da Maçonaria, buscando localizar na Escócia
evidências das suas origens escocesas ao final do século XVI e no século XVII
para depois mostrar o resultado das suas pesquisas com relação às influências
que acabaram chegando à Inglaterra modificando bastante o panorama anterior, e
ainda se espalhando depois pelo continente durante o século XVIII.
Nullius in verba (26): ("Nas palavras de
ninguém", em latim) é o lema da Royal Society. O site da Sociedade explica
que o lema é uma expressão da determinação dos Membros da Sociedade em resistir
à dominação de autoridade e em verificar qualquer afirmação através de fatos
determinados por experimentação. A expressão veio da epístola de Horácio e seu
colaborador Caiopn Cílnio Mecenas, onde ele afirma não ser devoto de nenhuma
seita específica, mas sim um homem eclético por natureza. (fonte: wikipedia)
Escolástica (27): ensinamento e doutrina da
Escola: designa-se assim a Filosofia e a teologia ensinadas na Idade Média, na
Europa, a partir do século IX (e até o século XVII, aproximadamente). Trata-se
essencialmente de conciliar fé e luz natural (razão). A partir de São Tomás
(séc. XVIII), a influência de Aristóteles será preponderante. (Fonte:
Dicionário de Filosofia”)
John Hamill (28): foi durante muito tempo
bibliotecário e curador da Grande Loja Unida da Inglaterra. Past Master da Loja
de Pesquisas Quatour Coronati, nº 2076.
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