Maçonaria e Deficiência: A Luta do Irmão
Valentin Haüy
A história é muitas vezes escrita a partir das
grandes batalhas políticas, dos confrontos militares e das revoluções sociais.
No entanto, há outros combates, mais silenciosos, mas igualmente
significativos, que atravessam os séculos. Um desses é o da inclusão das
pessoas com deficiência na vida social, cultural e espiritual da humanidade.
Embora essa luta tenha ganhado mais força nas
últimas décadas, com legislações, campanhas e direitos assegurados, ela tem
raízes mais antigas. Já no século XVIII, influenciado pelo Iluminismo, alguns
homens visionários começaram a olhar para além da caridade e se empenharam na emancipação
e autonomia das pessoas com deficiência. Um desses pioneiros foi Valentin Haüy,
um maçom que se destacou por sua ação concreta e revolucionária à época.
O
Contexto da Época
É fácil cair na armadilha do anacronismo, ou
seja, julgar o passado com os olhos e valores do presente. O historiador Lucien
Febvre já advertia contra esse risco. Contudo, é legítimo – e inspirador –
identificar nas ações de certos indivíduos do passado as sementes do que hoje
valorizamos como direitos fundamentais.
No século XVIII, o movimento iluminista
colocava a razão, a ciência e a dignidade humana no centro do debate. Nesse
ambiente efervescente, a Maçonaria se consolidava como uma força social
influente, reunindo homens comprometidos com o progresso moral e intelectual da
humanidade. Foi neste meio que Valentin Haüy se destacou.
Valentin Haüy: O Irmão da Luz para os que não
viam
Valentin Haüy (1745–1822), filólogo e servidor
público francês, é lembrado por seu trabalho inovador com pessoas cegas. Ele
foi o fundador da primeira escola para cegos do mundo, a Instituição Real dos
Jovens Cegos de Paris (que viria a se tornar o atual Instituto Nacional dos
Jovens Cegos – INJA). Seu método pioneiro consistia no uso de tipografias em
relevo, que permitiam a leitura pelo tato – uma base para o sistema Braille que
seria desenvolvido posteriormente.
Mas Haüy não era apenas um pedagogo genial. Ele
era também Maçom, e sua ação estava profundamente enraizada nos ideais da
Fraternidade: liberdade, igualdade, fraternidade e, sobretudo, dignidade humana.
O Museu da Maçonaria da França guarda um raro e comovente testemunho de sua
atuação no seio da Ordem, destacando seu compromisso com uma Maçonaria
verdadeiramente inclusiva.
A
Regra dos “5 B”: Realidade ou Mito?
Durante muito tempo circulou a ideia de que
havia uma antiga norma que impedia a iniciação maçônica de pessoas com
determinadas deficiências – os chamados “coxos, caolhos, vesgos, gagos,
fantasmas” (fantasmas, aqui, refere-se a pessoas deformadas ou com deficiência
aparente). Tal proibição ficou conhecida como a “Regra dos 5 B”.
Entretanto, uma análise cuidadosa dos textos
fundacionais da Maçonaria especulativa mostra que essa regra jamais existiu
formalmente. O que existe é uma menção nas Constituições de Anderson de 1723,
que repetem um artigo dos “Deveres Antigos”, no qual se afirma que o candidato
à iniciação “não deve ter nenhuma mutilação ou defeito em seu corpo que o torne
incapaz de aprender a Arte”.
Esse trecho, longe de ser uma discriminação
arbitrária, refletia as exigências da Maçonaria Operativa, onde o trabalho era
físico e requereria aptidões práticas. Com a transição para a Maçonaria
Especulativa, centrada no simbolismo e na elevação moral e espiritual, esse
critério perdeu o sentido original, embora, infelizmente, alguns preconceitos
tenham persistido por inércia cultural.
Um Maçom à Frente de Seu Tempo
Valentin Haüy quebrou barreiras. Em vez de
enxergar a deficiência como uma limitação absoluta, ele via potencial a ser
desenvolvido. Seu trabalho com jovens cegos não apenas lhes ensinava a ler e
escrever, mas também os capacitava a exercer profissões e se tornarem cidadãos
ativos e autônomos. Isso num tempo em que os deficientes eram considerados
inúteis ou apenas objetos de piedade.
Na Loja Maçônica, ele defendia os mesmos
princípios. Sua luta foi pela inclusão e pela dignificação do ser humano em
todas as suas formas. Ele compreendia que a verdadeira iniciação é interna,
espiritual, e que o Templo do homem é construído no coração e na mente – não
nos músculos ou nos olhos.
Conclusão
A história do Irmão Valentin Haüy é um exemplo
poderoso de como a Maçonaria, quando fiel aos seus princípios mais elevados,
pode ser um instrumento de transformação social. Ela nos recorda que o
verdadeiro Maçom não julga pelas aparências, mas busca a Luz em todas as
manifestações da condição humana.
Num tempo em que a inclusão ainda é uma tarefa
inacabada, olhar para a trajetória de Haüy é mais do que um exercício de
memória: é um chamado à ação. Que sua vida continue a inspirar aqueles que,
dentro e fora das Lojas, lutam por uma sociedade mais justa, fraterna e
acessível a todos.
Texto baseado em artigo original de Pierre
Mollier, historiador e diretor do Museu da Maçonaria da França.
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