Da Redação
Na tradição maçônica, uma das imagens mais
emblemáticas é a do “pedra bruta” – o símbolo do homem imperfeito que se lapída
ao longo da vida. Frequentemente evocada nos trabalhos de Loja, essa metáfora
corre o risco de perder sua força pelo uso repetido. No entanto, quando
colocada em seu contexto simbólico mais amplo, ela revela um vasto universo de
significado que conecta espiritualidade, filosofia, alquimia e
autoconhecimento.
O
Golpe do Aprendiz: Um Rito de Autotransformação
Em algumas Lojas, existe uma tradição solene e
profundamente simbólica: a realização física do "golpe do aprendiz"
sobre a pedra bruta. Este ato representa a essência da jornada maçônica – a
obra contínua de aperfeiçoamento pessoal, expressa através da linguagem dos
pedreiros e arquitetos medievais. Cada golpe dado na pedra simboliza o esforço
consciente de moldar o próprio caráter, removendo imperfeições, vícios e
ilusões.
Contudo, mesmo esse símbolo carrega limites. A
metáfora da escultura não abarca inteiramente a dimensão orgânica e vital do
crescimento humano. A título de contraste, pode-se evocar o paralelismo entre
os jardins franceses, com suas formas rígidas e controladas, e os jardins
ingleses, que respeitam o crescimento natural, intervindo apenas quando
necessário. Na Maçonaria – que emprega também os símbolos da luz e do cosmos –
a pedra torna-se parte de um sistema simbólico grandioso e multidimensional.
Michelangelo, Plotino e a Essência Interior
A imagem do escultor encontra um paralelo
inspirador na célebre resposta de Michelangelo, ao ser perguntado como criava
figuras tão magníficas como o Davi: "Eu apenas retiro o que é
desnecessário." Esse pensamento ecoa uma passagem das Enéadas de Plotino,
filósofo neoplatônico do século III:
"Age
como o escultor: remove o que é inútil, endireita o que está torto, e não cesse
de esculpir a tua alma até que nela brilhe o esplendor divino da virtude."
Essa mesma ideia está presente séculos depois
na Enciclopédia de Diderot e d’Alembert, onde se afirma que, para alcançar o
conhecimento, o ser humano deve livrar-se do orgulho, da superstição e do medo.
Jung, no século XX, propõe um conceito semelhante com seu processo de
individuação: o abandono da “persona”, ou máscara social, rumo à descoberta do
verdadeiro eu.
Iniciação Maçônica, Hermetismo e Alquimia
Na iniciação maçônica, espera-se que o neófito
abandone o que impede seu progresso espiritual. As provas dos elementos (Terra,
Ar, Água e Fogo) têm por objetivo transformar o candidato em seu íntimo. Como
afirmou o maçom Gottlieb Imhof, trata-se de renovar-se em profundidade:
Na prova da Terra, o falso e o estranho à
essência devem morrer.
Na prova
do Ar, é preciso elevar-se acima da vulgaridade dos sentimentos e da divisão
interior.
A prova
da Água visa extinguir o desejo por fama e poder.
E na prova
do Fogo, a alma deve inflamar-se por uma vida nobre e altruísta.
Essa jornada reflete o caminho do Opus Magnum
alquímico – a transmutação da matéria bruta (prima materia) em ouro espiritual,
o chamado “lapis philosophorum” ou pedra filosofal. Essa pedra não simboliza
apenas a riqueza material, mas o princípio de cura e purificação da alma.
A fórmula alquímica V.I.T.R.I.O.L. – Visita
Interiora Terrae, Rectificando Invenies Occultum Lapidem ("Visita o
interior da terra e, retificando, encontrarás a pedra oculta") – aponta
para esse mesmo trabalho interior. O processo de Solve et Coagula (dissolver e
reunir) é uma perfeita analogia à lapidação da pedra bruta: eliminar o
supérfluo, reunir o essencial.
O
Templo como Projeto Interior
Na Maçonaria, o templo não é apenas o local
físico dos rituais. É também o projeto ideal e simbólico da humanidade: um
edifício espiritual que cada maçom constrói em si mesmo. O Templo de Salomão,
nunca acabado, é a matriz dessa edificação interior. Nossos instrumentos –
martelo, cinzel, esquadro, compasso e o Livro da Lei – servem para guiar essa
obra, ancorada nos princípios de sabedoria, força e beleza.
Essa simbologia já aparece na Bíblia. Em 1
Pedro 2: 4-5, os cristãos são exortados a se tornarem “pedras vivas” na
construção de uma casa espiritual, tendo Cristo como a pedra angular. Assim, a
Maçonaria se alinha a uma tradição simbólica milenar que valoriza a
transformação individual como pilar da edificação coletiva.
A
Arte do Trabalho Individual
No costume descrito inicialmente, onde cada
irmão golpeia a pedra, aparecem as diferenças entre os maçons: um é mais
impulsivo, outro mais sereno; um utiliza o martelo com firmeza, outro prefere a
precisão do cinzel. Cada gesto revela potencial de crescimento pessoal.
E aqui reside uma lição essencial: mais
proveitoso é esculpir a própria pedra do que julgar a do irmão. A verdadeira
construção do Templo da Humanidade começa com o esforço humilde e perseverante
de cada um em moldar a si mesmo.
“Age
como o escultor” – não é apenas uma metáfora. É um chamado à ação profunda,
ao desbaste constante de nossas imperfeições, à busca da essência. Essa é a
vocação do maçom: transformar-se, elevar-se, e com isso, contribuir para um
mundo mais justo e iluminado. Pois cada pedra lapidada é parte de um templo
maior – o da dignidade humana.
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