Como uma cidade inglesa se tornou a guardiã de
um sistema maçônico único, preservando rituais que o tempo quase esqueceu.
No vasto e complexo mosaico da Maçonaria, cada
rito é um universo em si, um caminho com sua própria história, filosofia e
simbolismo. Como um mestre maçom iniciado e exaltado ao Grau do Real Arco no
Rito Americano (popularmente conhecido como Rito de York), sempre me fascinou a
forma como nossas tradições se ramificaram e evoluíram. É com esse olhar, de
quem conhece uma das grandes correntes do rio maçônico, que me volto para uma
de suas anomalias mais fascinantes: o Rito de Baldwyn, um sistema de "tempo
imemorial" que sobrevive como um fóssil vivo, confinado à cidade inglesa
de Bristol.
O que torna o Rito de Baldwyn tão singular não
é apenas sua antiguidade, mas sua arquitetura. Ele integra, em uma única e
coesa jornada, elementos que na maioria das outras jurisdições - incluindo a
minha permanecem rigorosamente segregados. É um vislumbre de como a Maçonaria
poderia ter sido antes que as grandes unificações e padronizações traçassem as
fronteiras que hoje conhecemos. Seu nome, uma homenagem aos reis cruzados de
Jerusalém, como Balduíno II, já nos transportam para uma era de cavalaria e fé cristã,
um caráter que o rito preserva com orgulho. Esta não é apenas uma análise
acadêmica; é uma exploração de um primo distante e misterioso, guiada pelas
obras de historiadores como Keith B. Jackson e, especialmente, David Harrison,
cujas recentes pesquisas e traduções rituais nos abriram portas para este mundo
esquecido.
A Fortaleza de Bristol: Uma História de
Resistência
As origens do Rito de Baldwyn estão envoltas
naquela bruma de tradição oral que o conecta aos Cavaleiros Templários
medievais, mas é no século XVIII que sua história documentada emerge das
sombras. O artefato pivotal é a Carta de Compacto de 1780, um documento que não
apenas estabeleceu formalmente o "Supremo e Real Acampamento da Ordem dos
Cavaleiros Templários", mas que também deu ao rito sua espinha dorsal
organizacional. A liderança de figuras proeminentes como Thomas Dunckerley, que
se tornaria Grande Mestre dos Cavaleiros Templários da Inglaterra em 1791,
cimentou a autonomia e o prestígio de Bristol.
Contudo, o verdadeiro teste de fogo veio no
início do século XIX. A União de 1813, um evento monumental que unificou as
Grandes Lojas rivais dos "Antigos" e dos "Modernos", trouxe
consigo uma onda de padronização que ameaçava apagar as tradições locais.
Diante de uma tendência que muitos viam como uma secularização e simplificação
dos rituais, Bristol assumiu uma postura de guardiã. O Rito de Baldwyn
tornou-se um santuário para graus e práticas que corriam o risco de extinção,
como o Cavaleiro da Espada e da Águia e a Ordem de Kilwinning. Essa resistência
foi tão feroz que, em 1856, o Acampamento de Baldwyn chegou a declarar
independência do corpo nacional dos Templários, o Grande Conclave, alcançando
uma reconciliação em 1862 que, crucialmente, reafirmou sua soberania sobre seus
graus de cavalaria. Décadas depois, um tratado com o Supremo Conselho 33°
garantiria sua independência também sobre o grau de Rosa-Cruz.
A expansão do rito foi mínima e deliberada.
Algumas Cartas Constitutivas foram emitidas, notavelmente para Adelaide, na
Austrália, onde os rituais de Baldwyn persistem até hoje. Mas, em essência, ele
permaneceu como o tesouro de Bristol, um bastião contra a uniformização, uma
amálgama viva de práticas que a maioria da Maçonaria inglesa havia deixado para
trás.
Os Sete Degraus da Jornada
O Rito de Baldwyn compreende sete graus, que
guiam o maçom por uma jornada integrada através da Maçonaria Simbólica, do Real
Arco e das Ordens de Cavalaria. O acesso é exclusivo, por convite, para Mestres
Maçons que já foram exaltados ao Real Arco em um Capítulo de Bristol. A
progressão é a seguinte:
Iº: Os Três Graus Simbólicos (Aprendiz,
Companheiro e Mestre Maçom) - Estes são o alicerce, praticados segundo o antigo
Ritual de Bristol, notório por elementos dramáticos como um surpreendente
"estrondo" durante a iluminação do candidato.
Um dos tesouros do rito, por preservar a antiga
e complexa cerimônia
II°:
Suprema Ordem do Sagrado Arco Real "Passagem dos Véus", rara após
1813.
III°:
Cavaleiros dos Nove Mestres Eleitos
IV°:
Antiga Ordem dos Cavaleiros Escoceses Grandes Arquitetos
V°:
Cavaleiros do Oriente, da Espada e da Águia
VI°: Cavaleiros de São João de Jerusalém,
Palestina, Rodes e Malta
VII°: Cavaleiros da Rosa-Cruz do Monte Carmelo
- O ápice da jornada.
A Ponte Transatlântica: A Cerimônia dos Véus e
a Conexão com o Rito de York
Para mim, como um maçom do Rito de York, a
persistência da cerimônia da "Passagem dos Véus" é o ponto de
ressonância mais poderoso. Este ritual, que representa a jornada da alma
através de barreiras simbólicas em busca da Verdade Divina, foi removido da
prática padrão do Real Arco inglês em 1835. No entanto, ele sobreviveu não
apenas em Bristol, mas também na Escócia, na Irlanda e, de forma proeminente,
nos Capítulos do Real Arco do Rito de York americano. Esta é uma ponte viva,
uma prova de nossa ancestralidade comum, anterior à União de 1813.
As semelhanças, no entanto, apenas ressaltam as
diferenças. O Rito de Baldwyn se apresenta como um sistema unificado e
amalgamado, um ecossistema fechado e de acesso exclusivo. O Rito de York, por
outro lado, evoluiu de forma expansiva e democrática, estruturado em corpos
separados e sequenciais (o Capítulo para o Real Arco, o Conselho para os Graus
Crípticos e a Comendadoria para as Ordens de Cavalaria). Baldwyn é um guardião
isolado de uma antiga forma unificada; York é a evolução popular e amplamente
difundida dessa mesma tradição.
Um Legado Vivo
O Rito de Baldwyn é mais do que uma curiosidade
histórica; é um exemplo eloquente da natureza adaptativa e, paradoxalmente,
conservadora da Maçonaria. Ele nos ensina que a força de uma tradição não
reside apenas em sua capacidade de se modernizar, mas também em sua coragem de
preservar. As pesquisas de acadêmicos como Harrison e Jackson nos permitem hoje
apreciar a profundidade deste rito, conectando-o não apenas à história inglesa,
mas a um período de intenso sincretismo esotérico em toda a Europa.
Estudar o Rito de Baldwyn é, em última análise, um convite para celebrar o pluralismo maçônico. É um lembrete de que, sob a bandeira da Fraternidade, existem muitos caminhos, e alguns dos mais belos são aqueles que foram zelosamente guardados, esperando para compartilhar sua luz com as novas gerações de estudiosos e maçons.
Fontes e Referências
Cohoughlyn-Burroughs,
C. E. (1911). Bristol Masonic Ritual: The Oldest and Most Unique Craft Ritual
Used in England.
Harrison,
D. (2021). The Rite of Seven Degrees. Lewis Masonic.
Harrison,
D. (2023). The Rite of Seven Degrees Ritual Book: A New English Translation
with Descriptions of the Grades. Publicado de forma independente.
Harrison,
D. (2017). The Lost Rites and Rituals of Freemasonry. Lewis Masonic.
Harrison,
D. (2020). Rediscovered Rituals of Freemasonry. Lewis Masonic.
Harrison,
D. (2009). Genesis of Freemasonry. Lewis Masonic.
Jackson,
K. B. (2020). Beyond the Craft (6ª ed.). Lewis Masonic.
“Rite
of Baldwyn.” (s.d.). Wikipedia. Recuperado de
https://en.wikipedia.org/wiki/Rite_of_Baldwyn
Traveling
Templar. (2022, 23 de junho). “The Rite of Baldwyn.” Recuperado de
https://www.travelingtemplar.com/2022/06/the-rite-of-baldwyn.html
The
Square Magazine. (2021, dezembro). “Book Review — The Rite of Seven Degrees.”
Lewis
Masonic. (s.d.). “The Rite of Seven Degrees.” e “Beyond the Craft — 6th
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Dr.
David Harrison. (2024, 21 de fevereiro). “A new short paper on the engravings
of Pierre Lambert de Lintot.” Recuperado do site do autor e de seu perfil no
Academia.edu.
Amazon.
(s.d.). “The Rite of Seven Degrees Ritual Book.” Página do produto.
Reddit.
(2016, 13 de abril). “Rite of Baldwyn.” Fio de discussão no subreddit
r/freemasonry.
Fontes
adicionais de periódicos maçônicos e fóruns acadêmicos online, incluindo
discussões sobre as origens da Maçonaria.
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