Na consciência coletiva da humanidade, corre um
rio simbólico que separa o mundo comum da dimensão do sagrado. Esse rio aparece
em diversas tradições: o Lete e o Aqueronte na mitologia grega, o Jordão na
Bíblia, as águas purificadoras dos templos antigos e os rios sagrados do
hinduísmo. Em todas elas, a água corrente representa a passagem entre o profano
e o divino, entre estados distintos de consciência.
A tradição maçônica, herdeira dessa sabedoria
ancestral, incorporou essa imagem do rio como símbolo da transição entre o
mundo exterior e o universo iniciático.
Não se trata apenas de metáfora poética, mas de
um arquétipo que atua na psique do iniciado como força de transformação. Nos
antigos ritos de mistério, o neófito atravessava simbolicamente as águas da
morte para renascer para uma vida superior. Os egípcios mostravam essa passagem
no Livro dos Mortos, e os Mistérios de Elêusis realizavam banhos rituais que
representavam a travessia das águas infernais.
O rio simboliza o limen, o limiar imprevisível
que não pode ser dominado, apenas cruzado. Diferente da ponte ou da porta, que
são fixas e controláveis, o rio é móvel e mutável, suas profundezas são
insondáveis. Por isso, é o símbolo ideal da iniciação: quem deseja atravessar o
limiar do Templo precisa abandonar o mundo profano e entregar-se por completo à
experiência, pois não há ponto fixo sobre a água em movimento.
A travessia exige risco e entrega. Quem
mergulha em suas águas precisa aceitar leis que não controla e passar por uma
morte simbólica: renunciar às certezas do mundo material. A alquimia via na
água o elemento capaz de dissolver formas antigas para permitir novas criações.
Assim também o rio iniciático dissolve estruturas mentais e emocionais do
profano. Suas águas lavam bloqueios que impedem a percepção espiritual,
submetendo o ego à corrente transformadora.
Essa dissolução, porém, traz regeneração. O rio
não é apenas o túmulo do homem velho, mas o berço do homem novo. As águas que
apagam o passado fecundam o futuro. A mudança não é apenas aquisição de novos
conhecimentos, mas uma alteração profunda na consciência. O iniciado guarda a
memória do que foi e do que se tornou, unindo ambos em uma síntese que ilumina
o passado com nova luz espiritual.
A iniciação maçônica não afasta do mundo
ordinário, mas o reintegra em uma visão mais ampla. O Mestre que atravessou
muitas vezes o rio aprende a perceber o sagrado mesmo na rotina e a reconhecer
os sinais da Arte na vida profana. Quem bebe das águas do conhecimento não pode
viver de forma instintiva: deve testemunhar a Luz alcançada além do rio.
Embora o rio não apareça visivelmente no
Templo, seu simbolismo está presente: o pavimento em mosaico evoca o fluxo e
refluxo das águas; as duas Colunas da entrada lembram margens opostas; a marcha
ritual imita o movimento circular das águas. Cada grau exige nova travessia,
cada avanço requer nova imersão. Mesmo o Mestre permanece peregrino à beira do
rio, aberto a novas metamorfoses.
Cada Loja é como um porto fluvial, onde viajantes de diferentes margens se encontram unidos pela experiência da travessia. O rio da iniciação não tem nascente visível nem foz definitiva: nasce do mistério e retorna ao mistério, purificando e regenerando todos os que confiam no seu curso eterno.
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