A Inclinação de Nicômaco – I*



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Por Hilquias Scardua

Não recebi a Ordem, pois foi pelo caos que ela me alcançou, e na força da Ordem o caos foi ordenado. Sim, como o louco que solitariamente caminha com seu cachorro, levando sua pouca bagagem e um dos pés estendido para o desconhecido, envolvo-me nas leituras e embriago-me, vestindo-me do personagem central da Obra.

Estava mais uma vez a visitar a notável obra de Aristóteles, Ética a Nicômaco. Decerto, é um deleite a cada página, algo que constantemente me eleva às mais sublimes condições do pensamento humano. Contudo, não consigo deixar de sentir-me aviltado por não perceber, em nosso meio maçônico e social, sequer um mínimo do registro que Nicômaco teve ao receber tal herança intelectual de seu pai. Esse traço parece ter se perdido na falta de inclinação às boas obras e no enfraquecimento do hábito da leitura.

Ao me deparar com o segundo livro, cheguei a pensar alto: "Deveria ser Lei a leitura dessa obra nas Ordens de Aperfeiçoamento." [Riso.] Quem me dera que meus Irmãos Maçons tivessem a inclinação de Aristóteles para com sua prole, ou a de Nicômaco, e dessem ouvidos a tudo que lhes foi ofertado.

Pensar dessa forma, porém, pareceu-me um devaneio utópico, uma ilusão vil. Estranheza, pura estranheza, pois tudo o que se vê é uma pálida sombra do que o filósofo legou ao seu filho.

É tudo bruto demais, frágil demais. Tudo é tão exagerado que, por hábito, nada resta além de exemplos infinitos dos excessos que caracterizam o torpe vício. É bondade demais, é maldade demais. Tudo é tão demasiado. O mundo, preso aos extremos, não compreende a virtude como medida justa, como a mediania que Aristóteles tão bem definiu.

Ousara, o escalador do pêlo do coelho, em palavras poucas, mas de equidistante densidade e expansividade: "Um mestre em qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando o meio-termo e escolhendo-o, não no objeto, mas relativamente a nós."

É sobre a pessoa e não o objeto, é mesmo sobre isso e nada mais. Esse ensinamento ecoa como um lembrete constante: a virtude não é um ideal absoluto, mas uma prática relativa à condição humana, moldada pela experiência e pelo discernimento.

Depois de nos ser dada a condição de "coisa", qualquer coisa nos cabe. Decerto, é fácil relacionar o objeto a qualquer outra coisa igualmente relacionável. Por conseguinte, "o indivíduo/ser humano é objeto do seu meio." Sobre isso, o que nos cabe dizer? Se não refletirmos sobre nossa própria condição de agentes e receptores da realidade, como compreenderemos nossa verdadeira inclinação?

Se a virtude realmente tivesse a qualidade de visar o meio-termo, e essa virtude moral dissesse respeito às ações e paixões, onde a paixão da alma residiria, senão no simples direito de qualificar-se como virtude? Equivocamo-nos, confundindo os hábitos com as inclinações da alma e, destas, as paixões que, por sua vez, dão caráter à paixão em sua dose pura e consonante.

Não poderíamos deixar de refletir sobre o quanto nos levaria à constância de um hábito virtuoso, que nos apontaria a um caráter humano elevado. Não duvidaria da inclinação de Nicômaco, tampouco da de todos aqueles que, como ele, receberam a instrução do Mestre.

Ah! Chega a ser engraçado, de tão absurdo, pois minha ironia também aprendeu a sorrir como qualquer outro demasiado falsário ensaia sua hipocrisia. Mas, de sorriso equilibrado, ensaiada virtude da diplomacia conquistada, pergunto-me: como sustentar a virtude em um mundo tão inclinado aos extremos?

Esta reflexão, tal como a busca de Nicômaco, não é um ponto de chegada, mas um convite a prosseguir. Que possamos todos, Maçons ou não, reencontrar no equilíbrio da virtude o caminho para um caráter mais elevado, uma vida mais justa e uma sociedade menos desmedida. Afinal, não é no excesso ou na falta, mas no justo meio que reside a verdadeira inclinação da alma.

Voltemos ao dilema das "paixões da alma". Qual alma subsiste sem uma dose de paixão? Não seriam as paixões as forças que impulsionam o espírito? E, ainda assim, quão infames foram aqueles mestres que tomaram do neófito o direito dessa força motriz, confundindo virtude com contenção absoluta.

De qual paixão ensaiou o Mestre em sua ponderação? Foi do mau hábito que definiram certos limites? Ou foi na virtude como hábito deliberado que encontraram a justa medida para o viver humano?

Mesmo os mais simples concebem a virtude através do hábito e da disciplina. E os bons, os "homens de desejo" sugeridos por Louis Claude de Saint-Martin? Restaria alguma qualidade neles capaz de sobrepor-se à condição dos homens comuns?

Segue a inclinar-se, Nicômaco.

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