Da Redação
Nas iluminuras das chamadas Bíblias Moralizadas
— manuscritos ricamente ilustrados produzidos entre os séculos XIII e XIV —
encontramos algumas das mais emblemáticas representações do Deus Criador como
Geômetra. Exemplos célebres aparecem na Bíblia de Viena (códice 2554), na
Bíblia Moralizada de Viena (códice 1179), no Manuscrito de Toledo, destinado a
Margarida da Provença, e na Bíblia OPL – Oxford Paris Londres, associada a São
Luís da França.
Apesar de dispersas em diferentes cidades e
manuscritos, essas obras partilham uma mesma estrutura iconográfica: um Deus
jovem, entronizado, segurando um compasso sobre o cosmos, envolto por uma
mandorla quadrilobada sustentada por quatro anjos.
Deus como Artífice Supremo
Nessas imagens, Deus não aparece como o “velho
de barba branca” tão difundido pela arte posterior. Em vez disso, apresenta
traços juvenis, frequentemente associados à figura de Cristo, sublinhando a
ideia neotestamentária do Logos como presença ativa na Criação.
O elemento mais marcante, porém, é o compasso.
Com ele, Deus traça o círculo primordial, símbolo da ordem cósmica emergindo do
caos. Essa associação não surgiu ao acaso: ela tem raiz direta nas Escrituras.
A Sabedoria ao Lado do Criador
Para compreender esse simbolismo, é necessário
retornar ao livro dos Provérbios, especialmente ao célebre trecho de Provérbios
8:25-31. Ali, a Sabedoria fala em primeira pessoa e declara ter estado “ao lado
de Deus” antes mesmo da formação da terra.
A passagem descreve, em linguagem poética e
vívida, o processo criacional:
“quando traçou o círculo sobre a face do
abismo”
“quando lançou os fundamentos da terra”
“eu estava ao seu lado, trabalhando junto a
ele”
O detalhe do círculo traçado no abismo é
particularmente significativo: ele ecoa diretamente o gesto representado nas
iluminuras, onde o compasso é instrumento da geometrização do universo.
Assim, essas miniaturas não são mera fantasia
artística: são interpretações visuais da teologia bíblica.
O Compasso como Primeira Ferramenta da
Criação
Ao colocar Deus com um compasso na mão, os
artistas medievais reforçam uma leitura simbólica em que a Criação é um ato de
ordenação matemática, guiado pela proporção e pela harmonia.
Para os geômetras operacionais das corporações
medievais — pedreiros, construtores e arquitetos das catedrais — essa imagem
tinha enorme poder evocativo. O compasso era sua ferramenta principal,
instrumento de:
proporção
simetria
regra
harmonia
Se Deus cria o mundo como geômetra, então a
prática da geometria torna-se um reflexo humano da ação divina.
Mais tarde, com o surgimento das correntes
especulativas ligadas à filosofia, à ciência e às tradições iniciáticas, o
compasso se elevou ainda mais como símbolo. Ele deixou de ser apenas
instrumento de trabalho e tornou-se emblema espiritual, apontando para:
a ordem moral
os limites éticos
a busca pela sabedoria
a harmonia entre espírito e matéria
O Compasso no Volume da Lei Sagrada
É por essa razão que, ao longo dos séculos, o
compasso consolidou-se como um dos principais símbolos das tradições que
valorizam a harmonia entre fé, razão e moralidade.
Se o círculo traçado sobre o abismo do caos
representa o nascer da ordem, então o compasso ocupa, naturalmente, um lugar
privilegiado no Volume da Lei Sagrada, onde figura não apenas como ferramenta,
mas como princípio: o da Criação pensada, medida e equilibrada.
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