O Pão Sagrado: A Partilha Entre Vivos e Mortos




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Da Redação

Desde os períodos mais remotos da história humana, o alimento ocupa o centro dos rituais sagrados. Comer nunca foi apenas um ato biológico: é gesto simbólico, ponte entre mundos, forma de comunicação com o divino e com aqueles que já partiram. O alimento das festas, sobretudo, abandona sua natureza cotidiana e torna-se cibo sacro — transformado, carregado de significados, elevado ao plano do sagrado.

Entre todos os alimentos utilizados nos ritos antigos, nenhum assumiu um papel tão universal quanto o pão. Em todas as civilizações e épocas, o pão foi considerado o alimento por excelência, símbolo de vida, fertilidade e continuidade. Assim, não surpreende que, muitas vezes, recebesse formas antropomorfas ou fosse tratado como representação da própria divindade. Em vários rituais, comer o pão significava, literalmente, partilhar da força do deus.


Mas se o pão dos vivos é sagrado, ele deve também ser oferecido aos mortos. Trata-se de restabelecer o vínculo com os antepassados, reafirmando que eles continuam pertencendo à comunidade. Nas culturas mais antigas, o dia dedicado aos mortos coincidia com o solstício de inverno — momento em que as fronteiras entre os mundos se confundiam. Nesse dia, conta-se que ninguém via sua própria sombra, assim como os mortos não a têm. Vivos e defuntos caminhavam então lado a lado.

Na Roma antiga, o pão era deixado como oferenda para apaziguar o “morto indigente”, aquele que poderia aparecer em sonhos para assustar crianças e adultos. Na véspera, fogueiras permaneciam acesas nos pátios para aquecer os espíritos, enquanto o fumo que subia aos céus simbolizava o axis mundi, a ligação entre terra e além.

Junto ao pão antropomorfo, colocavam-se feijões pretos, favas, castanhas, trigo, nozes, figos e frutas secas — alimentos destinados a alimentar e aquecer os defuntos naquela noite sagrada. Ao compartilhar a refeição simbólica com os vivos, os mortos eram reintegrados à comunidade e, em troca, garantiriam proteção, fertilidade da terra e abundância na colheita futura. Não por acaso, essa celebração ocorre no coração do outono, após a semeadura que deposita o grão na terra, conduzindo-o aos “infernos” antes de sua futura germinação.

 O “Grão dos Mortos” e a Tradição da Quarticella

No sul da Itália, especialmente na Puglia, mantém-se viva uma tradição singular: o “grão dos mortos”. A receita mistura trigo tenro com vincotto, cedro, sementes de romã, nozes e, mais recentemente, chocolate. Em Terlizzi, esse prato convive com outra antiga tradição: a Quarticella ou quartecèdde, a “quarta parte” do pão caseiro preparado especialmente para o Dia dos Mortos.

Esse pão tem forma alongada e é sempre partido, jamais cortado, lembrando o gesto ancestral da partilha e o ritual eucarístico. Antes de ser aberto, sua forma remete à imagem de uma vulva — símbolo de fertilidade ligado ao culto da Grande Mãe. Depois de dividido, pode lembrar um grão de trigo: morte e renascimento unidos em um só símbolo. O pão, afinal, nasce do grão que precisa morrer no solo para renascer em espiga.

A Quarticella é tradicionalmente recheada com ricotta forte, conhecida como incalcinatura, razão pela qual o pão também recebe esse nome. Antigamente, utilizava-se uma anchova salgada; hoje, tunas e aliches são substitutos comuns. O pão é sempre generosamente temperado com pimenta, pois o picante representa o fogo regenerador — força que transforma a morte em vida, símbolo de vitalidade e potência.

A ricotta forte, por sua vez, remete à cal utilizada antigamente para cobrir os corpos dos mortos antes da criação dos cemitérios modernos. Além de função sanitária, tinha valor simbólico: purificação para a passagem ao outro mundo.

Outro detalhe permanece inviolável: esse pão deve ser consumido às três da manhã, após a bênção na primeira missa do dia. O número três é sagrado em diversas tradições, associado ao compimento, ao ciclo completo, à própria Trindade. É também a hora do episódio bíblico da prisão de Jesus no Getsêmani, momento de profunda transição entre vida e morte.

O Milagre da Partilha

Talvez o aspecto mais belo dessa tradição seja o seguinte: a Quarticella não pode ser vendida. Ela deve ser doada. É o pão que circula entre vizinhos, familiares e amigos, perpetuando o milagre da partilha, da acolhida e da comunhão — valores essenciais para superar qualquer pensamento de morte.

Nesse gesto simples, repetido de geração em geração, renova-se a certeza de que vivos e mortos continuam unidos pela memória, pelo afeto e pelo alimento. O pão, símbolo de vida e renascimento, transforma-se em ponte entre mundos e em promessa de continuidade, justiça e paz.

Esse artigo é baseado na matéria Il Cibo Sacro: La Condivisione Del Pane Tra I Vivi e I Morti De Paolo Maggi publicado na Revista Athanor


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