Padre Eutíquio Pereira da Rocha: Sacerdote, Maçom, Intelectual e Combatente da Liberdade


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A trajetória do Padre Eutíquio Pereira da Rocha, nascido na Bahia em 1817, é uma das mais singulares — e por vezes controversas — da história religiosa, política e maçônica do Brasil imperial. Filho de uma mulher africana angolana, Maria Domingues da Costa, escravizada e posteriormente alforriada, Eutíquio ascendeu socialmente por meio da educação, demonstrando desde cedo grande vocação intelectual. Sua formação religiosa iniciou-se no Seminário dos Carmelitas, em Salvador, instituição que moldou sua identidade sacerdotal, filosófica e moral.

 Da Bahia ao Pará: o Padre-mestre, Educador e Liberal

Antes de deixar sua província natal, Eutíquio atuou como padre secular e como padre-mestre do Recolhimento das Educandas, destacando-se pela inclinação ao ensino e ao pensamento filosófico. Em 1851, transferiu-se para o Pará, onde a cidade de Belém lhe ofereceu um novo horizonte político e intelectual. Tornou-se adepto do Liberalismo e aderiu ao programa do Partido Liberal, movimento que combinava ideais de autonomia, anticlericalismo moderado e reformas sociais.

No Pará, ele consolidou sua reputação como professor de filosofia, ao fundar um colégio onde lecionava lógica, metafísica e pensamento racional. Sua paixão pelo ensino marcou profundamente sua obra e sua atuação pública.

 A Iniciação Maçônica e a Ascensão na Ordem

Em 1857, Eutíquio iniciou-se na Maçonaria, instituição na qual encontrou afinidade plena com seus ideais de liberdade de consciência, progresso humano e combate ao despotismo. Seu comprometimento foi tão sólido que, pouco depois, alcançou cargos de grande prestígio, tornando-se Delegado do Grão-Mestre da Maçonaria na Província do Pará.

A Ordem não era apenas um espaço filosófico para ele, mas um campo de militância. Via na Maçonaria uma forma superior de organização moral, capaz de promover a emancipação do homem — especialmente do homem escravizado — por meio da educação e da liberdade espiritual.

 Abolicionista e Defensor da Liberdade

Como jornalista, Eutíquio destacou-se pela defesa do Abolicionismo, concebendo a liberdade não apenas como ato jurídico, mas como processo espiritual e pedagógico. Para ele, a carta de alforria simbolizava apenas o início da verdadeira libertação. Era preciso preparar o ex-escravo para a autonomia por meio da religião, da moral e da instrução.

Sua luta pela emancipação humana tinha um inimigo declarado: o despotismo, que ele considerava a antítese da liberdade. Em sua visão, uma religião livre das amarras do absolutismo e das interferências políticas representava o melhor governo espiritual para orientar o homem — especialmente o homem recém-liberto — rumo ao pleno exercício da cidadania. Durante sua vida sacerdotal, tanto na Bahia quanto no Pará, dedicou-se a batizar, catequizar e apoiar escravos, reforçando sua missão libertadora.

 Conflitos com a Igreja e o Caminho da Militância

Embora nunca negasse os fundamentos da fé cristã, Eutíquio aproximou-se cada vez mais da causa maçônica e do pensamento laico. Em Belém, além de lecionar e militar politicamente, presidiu o Convento dos Carmelitas e atuou como jornalista combativo. Defendia abertamente:

 A separação entre Igreja e Estado

 A autonomia do Estado Imperial sobre o clero

 A laicização das práticas religiosas públicas, como a secularização do Círio de Nazaré

 O Republicanismo nascente

Essas posições colocaram-no rapidamente em confronto direto com o bispo do Pará, Dom Antônio de Macedo Costa, um dos mais influentes líderes eclesiásticos do país e defensor da rigidez ultramontana. O choque entre ambos era inevitável: um representava a renovação liberal e maçônica; o outro, a restauração conservadora da autoridade eclesial.

Como consequência, Eutíquio foi suspenso de suas funções sacerdotais por muitos anos, sendo publicamente tachado como “padre apóstata”, “sacerdote transviado” e até “excomungado”, conforme registros da época. Na prática, sua identidade sacerdotal deu lugar à figura do intelectual laico, orgulhosamente maçom e defensor das liberdades civis.

 A Carta de 1872: Um Marco de Coragem

O auge desse confronto ocorreu em 1872, quando Eutíquio, já iniciado no Grau 33º do Rito Escocês Antigo e Aceito, escreveu uma carta emblemática reafirmando de forma inequívoca sua condição de Maçom, mesmo diante das punições da Igreja. O documento é considerado um dos mais fortes testemunhos brasileiros de fidelidade aos ideais maçônicos, afirmando que nem a ameaça da sanção religiosa poderia submeter sua consciência.

A carta tornou-se símbolo da autonomia moral do maçom frente às estruturas dogmáticas da época.

 Os Últimos Anos e a Morte Irredutível

A oposição entre o padre maçom e a Igreja não cessou. Já idoso e enfermo, Eutíquio recebeu a visita de um sacerdote enviado por Dom Macedo Costa para persuadi-lo, no leito de morte, a renunciar à Maçonaria em troca da extrema-unção. A tentativa fracassou. Fiel aos seus juramentos e convicções até o fim, morreu em 1880, recusando-se a abandonar a Ordem.

 Intelectual, Educador e Autor

Além de sua militância, deixou obras significativas, entre elas:

 “Curso de Filosofia, Lógica e Metafísica”

 “Prosa atraente e erudita”

Esses livros testemunham a amplitude de sua formação e seu compromisso com o pensamento racional.

 Legado

O Padre Eutíquio Pereira da Rocha permanece como figura ímpar da história brasileira:

 Sacerdote que desafiou a rigidez da Igreja ultramontana

 Maçom de destaque, fiel até a morte

 Abolicionista convicto e educador dedicado

 Jornalista e defensor da liberdade espiritual e política

 Intelectual negro em um Brasil escravocrata

Seu legado ecoa como exemplo de coragem, coerência e luta por liberdade, representando a rara fusão entre fé, filosofia e ação política em tempos de profundas transformações sociais.

 


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