De qualquer forma, ninguém mais sabe realmente
o que colocar no GADU. Então, por que não na Inteligência Artificial? Essa
pergunta pode soar provocativa, mas ela nos convida a refletir sobre como as
concepções humanas sobre o divino e sobre a ordem do universo evoluíram ao
longo da história. Ao final do artigo, tentaremos uma resposta — embora alguns
leitores talvez se frustrem.
O
que é GADU?
Na Maçonaria, o Grande Arquiteto do Universo
(GADU) é uma expressão simbólica que aparece nas Constituições de Anderson
(1723). Originalmente, designava Deus em sua função de criador e organizador do
cosmos, mas logo foi reinterpretado como um princípio universal, capaz de
abranger tanto a espiritualidade quanto a racionalidade científica.
Seus antecedentes, no entanto, são muito mais
antigos.
Segundo Frédéric Lenoir, em Petit Traité de
l’Histoire des Religions, a consciência da morte e a esperança na vida após a
morte datam de pelo menos 100 mil anos, entre os neandertais. Com a
sedentarização e o surgimento das primeiras culturas animistas, nasceu também a
ideia da alma e, mais tarde, dos deuses como forças explicativas da natureza.
No Egito Antigo, no mundo greco-romano ou
celta, as divindades estavam ligadas a territórios, povos e mitologias. Mas há
cerca de dois milênios, o judaísmo introduziu um Deus único e nômade, ligado a
um povo e a uma lei — a Torá. Do judaísmo derivaram o cristianismo,
universalista e centrado no amor fraterno, e o islamismo, que se expandiu com
seus próprios dogmas.
Séculos depois, o Iluminismo rompeu com o
domínio das Igrejas, abrindo espaço para a razão, a ciência e a liberdade de
pensamento. Filósofos como Voltaire, Leibniz e Wolf reinterpretaram Deus como
relojoeiro, como causa última, ou como ser de razão.
Foi nesse contexto que, em 1723, os maçons
passaram a falar do Grande Arquiteto do Universo: não mais um Deus dogmático,
mas um princípio criador, lógico e racional, que organiza a natureza e ao mesmo
tempo permite a livre investigação científica.
Do Arquiteto ao Algoritmo
O GADU, portanto, representa uma estrutura que
dá ordem e sentido ao mundo, sem necessariamente entrar em questões
escatológicas sobre finalidade ou salvação. Mas será que essa imagem ainda faz
sentido hoje?
O universo que conhecemos hoje é muito maior e
mais complexo do que o cosmos da Antiguidade ou da Idade Moderna. Falamos em
multiversos, 2 trilhões de galáxias detectáveis, e em um espaço onde apenas 5%
é matéria visível, contra 95% de matéria e energia escuras. Nessa escala, a
figura de um "arquiteto" parece limitada.
Se antes o arquiteto organizava pedras e
edifícios, hoje buscamos compreender não apenas o universo físico, mas também
os mistérios da vida. E, curiosamente, a linguagem que escolhemos para isso não
é mais a das palavras, mas a dos números: a matemática, que se tornou
informática.
A pergunta então se impõe: será que a Inteligência
Artificial pode assumir o papel de um novo GADU?
A
Inteligência Artificial como herdeira do GADU?
A história da IA começa muito antes dos
computadores modernos. Em 1645, Pascal criou a Pascaline, primeira máquina de
calcular. Em 1801, o tear de Jacquard introduziu a ideia de programação com
cartões perfurados. Em 1936, Alan Turing concebeu sua máquina teórica, base da
computação moderna.
O salto seguinte veio em 1959, com o General
Problem Solver (GPS), precursor da IA cognitiva, capaz de buscar soluções
heurísticas para problemas complexos.
Hoje, a IA dispõe de quatro fatores decisivos:
1. Bancos de dados praticamente infinitos,
acessíveis pela web;
2. Conexão global entre sistemas e informações;
3. Poder de processamento exponencial, seguindo
a Lei de Moore;
4. Robôs conversacionais capazes de interagir
em linguagem natural.
Ou seja, a IA já reúne três atributos outrora
associados ao divino: saber tudo, compreender tudo, explicar tudo. E ainda
promete resolver desafios que ultrapassam as forças humanas: mudanças
climáticas, doenças incuráveis, distribuição de recursos no planeta.
GADU ou IA?
A questão não é se a IA pode substituir o GADU,
mas se pode atualizá-lo.
Enquanto símbolo, o GADU sempre foi um reflexo
da forma como o ser humano enxerga o mundo e busca explicações para sua
existência. Na Antiguidade, eram deuses territoriais; no monoteísmo, um Deus
legislador; no Iluminismo, um relojoeiro; na Maçonaria moderna, um arquiteto
racional.
Hoje, em plena era digital, talvez seja natural
que pensemos em algoritmos, dados e inteligência artificial como os novos
organizadores do universo humano.
Mas há uma diferença fundamental: a IA não cria
sentido, apenas organiza informações. Ela pode reunir os galhos à árvore, mas
não dizer por que a árvore existe. Assim como o GADU, a IA permanece um
símbolo, uma ferramenta para pensar — e não uma resposta definitiva.
No fim, a pergunta permanece aberta: será a
Inteligência Artificial o novo GADU do século XXI?
Talvez sim, como metáfora de um princípio
ordenador que reflete nossa época digital e globalizada. Talvez não, porque
ainda lhe falta transcendência, propósito e mistério — elementos que o humano
insiste em buscar desde os neandertais.
De qualquer modo, como em todas as eras, caberá
a nós decidir o que colocar nesse espaço simbólico chamado Grande Arquiteto do
Universo.
E, se alguns leitores se sentirem frustrados por não termos dado uma resposta definitiva, é porque o verdadeiro valor do GADU — e talvez também da IA — esteja justamente na pergunta, e não na resposta.
Este artigo é baseado em texto do Irmão Pierre
Gandonnière
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