Da Redação
O século XVIII é conhecido como o século da
tolerância, expressão usada por Émile G. Léonard para definir uma época em que
as religiões, a filosofia e as novas correntes de pensamento político entraram
em confronto, mas também em diálogo. Nesse cenário de transição histórica, a Maçonaria
moderna emergiu como um espaço singular de encontro, onde a razão iluminista e
a fé religiosa se encontravam, mesmo em meio às tensões herdadas da Reforma e
da Contrarreforma.
Se os filósofos da Aufklärung — movimento que
ficou conhecido como Iluminismo — buscavam refletir sobre os fundamentos da
moral, da religião e da política, muitos maçons do período, alguns deles
iluministas de destaque, procuraram construir pontes. A fraternidade maçônica
se configurou, assim, como um campo em que se experimentava a convivência entre
crenças distintas, evitando o dogmatismo e afirmando a necessidade da liberdade
de consciência.
Um mundo religioso em convulsão
O quadro do século XVIII não pode ser
compreendido sem olhar para os séculos anteriores. A Reforma Protestante e a
resposta da Contrarreforma haviam fragmentado a cristandade europeia.
Perseguições religiosas se espalhavam pelo continente: na França, após a
revogação do Édito de Nantes, protestantes reformados foram perseguidos; nos
territórios germânicos vigorava o princípio Cuius regio, eius religio,
obrigando povos a seguirem a fé do príncipe; na Inglaterra, o Ato de
Estabelecimento de 1701 excluía católicos do trono.
Nesse ambiente, a tolerância parecia subversiva
para muitos líderes religiosos. Bossuet, por exemplo, ridicularizava os
chamados latitudinários, acusando-os de relativizar a verdade cristã em nome de
uma caridade ilusória. No entanto, outros, como Pierre Jurieu, sustentavam que
não se deveria condenar precipitadamente aqueles que não compartilhavam as
mesmas convicções, uma ideia próxima ao espírito que o pastor James Anderson
registraria nas Constituições Maçônicas de 1723: a obrigação de professar
apenas “a religião em que todos os homens concordam”, respeitando a diversidade
de opiniões.
A Maçonaria, nascida nesse terreno de
conflitos, não buscava uniformizar doutrinas, mas sim possibilitar que homens
de diferentes credos vivessem em paz e fraternidade. Essa postura soava
revolucionária em uma época em que religiões ainda se combatiam com violência.
Deísmo, teísmo e o desafio do ateísmo
Um dos debates mais intensos do período dizia
respeito à relação entre razão e fé. Desde Pierre Viret, em meados do século
XVI, havia surgido o termo deísmo, designando aqueles que, embora admitissem a
existência de um Deus criador, rejeitavam dogmas e revelações específicas. No
século XVII e XVIII, pensadores como Lord Herbert de Cherbury e Matthew Tindal
deram forma a essa corrente, defendendo uma religião natural, baseada em
princípios universais da moralidade e da razão.
A contraposição entre deísmo e teísmo não era
meramente acadêmica: tratava-se de definir se Deus deveria ser compreendido
como uma causa transcendente distante ou como um ser pessoal que intervém na
história. Immanuel Kant, por exemplo, distinguiu entre o deísmo racional e o
teísmo que reconhece um Deus vivo, legislador moral do mundo.
Ao lado disso, emergia também o ateísmo moderno.
O padre Jean Meslier, em seu famoso Testamento, afirmou que todas as religiões
não passavam de invenções humanas. O Barão d’Holbach, colaborador da Enciclopédia,
levou o argumento adiante, sustentando que a crença em Deus era fruto do medo e
instrumento de opressão. Paradoxalmente, no final da vida, ele se aproximou de
círculos místicos da Maçonaria, como a Ordem dos Eleitos Coëns, em busca de
respostas espirituais.
Os maçons, nesse cenário, adotaram uma posição
clara: “nem ateus estúpidos, nem libertinos irreligiosos”. Essa fórmula,
presente em escritos do período, sublinhava que a fraternidade valorizava a
razão, mas não aceitava a negação absoluta do divino nem a indiferença cínica
diante da vida espiritual.
Iluminismo e liberdade religiosa
O Iluminismo trouxe novos ventos para a vida
política, científica e religiosa da Europa. A Inglaterra já havia produzido
nomes como Locke e Hume, mas foi da França que o movimento ganhou maior
visibilidade, com Voltaire, Montesquieu, Rousseau e Diderot. Muitos desses
pensadores se relacionaram direta ou indiretamente com a Maçonaria.
Montesquieu, por exemplo, foi iniciado em Londres em 1730.
O espírito iluminista questionava superstições,
defendia a liberdade de consciência e pregava a necessidade da educação como
instrumento de emancipação. Moses Mendelssohn, expoente do Iluminismo judaico,
defendia a assimilação cultural sem abandono das tradições religiosas e
tornou-se um dos grandes defensores da tolerância.
Nesse ambiente, a Maçonaria não se confundiu
com o Iluminismo, mas dialogou com ele. O segredo, o ritual e o simbolismo da
Ordem não se harmonizavam completamente com a razão crítica iluminista, mas
havia um terreno comum: a defesa da moral, da virtude cívica, da igualdade e da
liberdade de pensamento.
Lessing e a Maçonaria como filosofia prática
Entre os nomes que sintetizam essa síntese
entre Iluminismo e Maçonaria está Gotthold Ephraim Lessing. Amigo de
Mendelssohn, dramaturgo, filósofo e iniciado em 1771, Lessing via na Maçonaria
não tanto um conjunto de ritos externos, mas uma experiência interior e vivida.
Em sua obra Ernst und Falk, afirmou que a verdadeira Maçonaria não era
arbitrária, mas derivava da própria natureza do homem e da sociedade.
Para ele, os ritos eram secundários: o
essencial estava no compromisso moral e no desenvolvimento espiritual de cada
irmão. Essa visão mostrava como a Maçonaria podia absorver o espírito
iluminista sem perder sua essência simbólica.
A
Maçonaria como síntese de fé e razão
Documentos maçônicos do período revelam
claramente esse esforço de conciliação. Em 1738, uma Relação apologética e
histórica da sociedade dos franco-maçons defendia que a razão e a verdade eram
os fundamentos da fraternidade, ao mesmo tempo em que reconhecia Deus como o
princípio e fim de todas as coisas.
As próprias Constituições de Anderson começavam
com uma narrativa sagrada, remontando a Adão, Noé e aos construtores bíblicos,
sublinhando que a história da Maçonaria não poderia ser separada da presença
divina. Esse fundamento teísta convivia, entretanto, com a defesa da liberdade
de consciência e da convivência pacífica entre diferentes credos.
Conclusão
O século XVIII foi um tempo de crise, mas
também de transição. A Maçonaria, surgida nesse contexto, refletiu a busca por
um espaço de diálogo entre fé e razão, entre o cristianismo em suas diversas
vertentes, o judaísmo e a filosofia iluminista. Enquanto as Igrejas ainda se
enfrentavam em disputas dogmáticas e políticas, os maçons procuraram afirmar um
princípio de convivência pacífica, fundamentado na moral e na tolerância.
Assim, a Maçonaria do Iluminismo não se tornou
simplesmente um braço da filosofia racionalista, nem tampouco uma seita
religiosa. Foi antes um laboratório social e espiritual, onde se experimentava
a ideia de que os homens podem ser diferentes em suas crenças, mas iguais em
sua dignidade e vocação para a liberdade.
Com isso, contribuiu para consolidar um dos
maiores legados do século XVIII: a noção de que a diversidade religiosa não é
ameaça, mas oportunidade para o exercício da tolerância. E, ao afirmar que o
maçom deve ser “nem ateu estúpido nem libertino irreligioso”, a Ordem
situava-se no delicado ponto de equilíbrio entre fé e razão — lugar onde, ainda
hoje, procura manter-se.
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