Da Redação
O nascimento
da Maçonaria moderna, marcado pela fundação da Grande Loja de Londres e
Westminster em 1717 e pela publicação das Constituições de Anderson em 1723,
não pode ser compreendido sem a análise de duas figuras fundamentais: James
Anderson (1679-1739) e Théophile Désaguliers (1683-1744). Ambos religiosos,
intelectuais e maçons, representaram tendências distintas mas complementares
que se entrelaçaram no projeto de dar legitimidade e identidade à jovem
fraternidade. Anderson encarnava o antiquarianismo, ou seja, o estudo erudito
do passado e da tradição, enquanto Désaguliers personificava o espírito
científico newtoniano, que buscava na filosofia experimental e nas descobertas
da natureza a base para uma nova visão de mundo. Juntas, essas duas correntes
foram ainda enriquecidas por uma terceira influência mais sutil, o rosacrucianismo,
que oferecia uma perspectiva hermética e contemplativa sobre a relação entre o
homem e o cosmos.
Um contexto de transformações
A época em que
viveram foi marcada por acontecimentos decisivos na história política e
espiritual das Ilhas Britânicas. A Revolução Gloriosa de 1688-89 depôs a
dinastia católica dos Stúarts, instaurando um regime protestante que promoveu
maior tolerância religiosa com o Ato de Tolerância de 1689. Embora ainda
houvesse exclusões (ateus e católicos romanos não eram contemplados), a
Inglaterra se tornava o palco de um raro equilíbrio entre fé e liberdade de
consciência. A ascensão da dinastia hanoveriana em 1714, com George 1º, apoiada
pelo partido Whig, também ofereceu bases para um ambiente de pluralismo,
ciência e reformas sociais. É nesse quadro que a Maçonaria se organizou como
espaço de encontro entre diferentes tradições, capaz de conciliar erudição,
ciência e espiritualidade.
James Anderson: o antiquário
Nascido em
Aberdeen, na Escócia, Anderson foi educado no presbiterianismo, de matriz
calvinista, e formou-se em teologia. Pastor de uma congregação presbiteriana em
Londres, dedicava-se também ao estudo da Antiguidade, sobretudo filosofia,
genealogia, história da arquitetura e arqueologia. Seu trabalho reflete o
espírito antiquário, preocupado em reunir e preservar documentos antigos,
fossem eles manuscritos medievais, textos clássicos ou tratados de arquitetura.
Foi essa erudição que levou a Grande Loja a confiar-lhe a redação das Constituições
de 1723, para as quais ele recorreu a manuscritos como o Regius e o Cooke,
elaborando uma narrativa histórica que ligava a Maçonaria a figuras bíblicas e
heróis da Antiguidade.
Para Anderson,
a Arte Real – identificada com a geometria e a arquitetura – era uma tradição
que remontava a Adão e atravessava as civilizações, chegando finalmente à
Maçonaria moderna. Sua intenção era clara: dar legitimidade histórica e
simbólica à Grande Loja recém-criada, conferindo-lhe uma genealogia
respeitável. Embora não fosse membro da Royal Society, Anderson conviveu de
perto com esse ambiente intelectual e buscou harmonizar tradição e modernidade.
Seu papel nas Constituições foi, sobretudo, o de compilador e historiador,
colocando sua erudição a serviço da Ordem.
Théophile Désaguliers: o cientista newtoniano
Désaguliers,
por sua vez, nasceu em La Rochelle, na França, filho de um pastor protestante
huguenote que se refugiou na Inglaterra após a revogação do Édito de Nantes.
Educado em Oxford, tornou-se pastor da Igreja da Inglaterra, mas destacou-se
principalmente como cientista. Discípulo de Isaac Newton, foi professor de
filosofia experimental e membro ativo da Royal Society, onde ocupou o posto de
responsável pelos experimentos. Popularizou a física newtoniana por meio de
conferências em clubes, cafés e universidades, aproximando a ciência de um
público mais amplo.
Membro da
Maçonaria desde 1712, Désaguliers foi Grão-Mestre da Grande Loja em 1719-20 e
desempenhou papel central na consolidação institucional da Ordem. Sua ação
política e intelectual buscava aproximar Maçonaria e Royal Society, e de fato,
cerca de metade dos membros da Sociedade eram também maçons na década de 1720.
Segundo a historiadora Margaret C. Jacob, graças a figuras como ele, a
Maçonaria se tornou uma “síntese cultural baseada em ciência, religião e
ideologia social”. No campo ritualístico, atribui-se a Désaguliers o incentivo
à elaboração do grau de Mestre Maçom e do mito de Hiram Abiff, embora não haja
consenso sobre sua autoria direta.
O rosacrucianismo como terceira via
Entre o
erudito Anderson e o cientista Désaguliers, circulava ainda a influência menos
visível do rosacrucianismo. Inspirado nos manifestos de Johann Valentin Andreae
e em autores como Michael Maier e Comenius, esse movimento combinava
cristianismo hermético, alquimia, geometria e matemática. A Royal Society,
desde sua fundação em 1660, fora permeada por nomes associados a círculos
rosacruzes, como Elias Ashmole e Robert Moray. Não surpreende, portanto, que
certos ecos dessa tradição tenham alcançado também a Maçonaria nascente, onde
se cultivava a ideia de correspondências entre o macrocosmo (o universo) e o microcosmo
(o homem), princípio herdado do neoplatonismo e da alquimia.
A Constituição de 1723: síntese de correntes
As
Constituições de Anderson representam uma ruptura em relação às Antigas
Obrigações dos maçons operativos, não apenas porque se dirigiam a homens que já
não eram pedreiros de ofício, mas também porque promoviam uma abertura
religiosa inédita. O latitudinarianismo, corrente teológica que defendia uma fé
cristã ampla e inclusiva, aparece de modo claro no artigo 1 sobre Deus e
Religião, que exige do maçom apenas a crença em um Ser Supremo e a rejeição do
ateísmo. Esse princípio permitia reunir cristãos de diversas denominações sob
um mesmo teto, minimizando as divisões confessionais.
O texto de
Anderson reflete sua preocupação histórica e teológica, enquanto a mão de
Désaguliers se percebe no aparato jurídico, nos regulamentos e talvez nos
artigos que tratam das relações entre Maçonaria, Igreja e Estado. Ambos,
juntos, conseguiram produzir uma obra que equilibrava tradição e inovação,
ciência e religião, erudição e política.
O cosmos maçônico
Se por um lado
a Maçonaria moderna incorporava o cosmos newtoniano, marcado pela harmonia dos
movimentos planetários e pela ideia de leis universais, por outro manteve viva
a antiga visão simbólica de correspondências entre os planos da realidade. Essa
“hibridização” entre ciência moderna e metafísica tradicional é um dos traços
mais característicos da doutrina maçônica do século XVIII. Newton, afinal,
também estudou alquimia e textos herméticos como a Tábua de Esmeralda, e sua
concepção de analogia entre o visível e o invisível foi acolhida com entusiasmo
por maçons e rosacruzes.
Ritual,
simbolismo e política
Enquanto as
Constituições privilegiavam a universalidade e a tolerância, os rituais
mantinham forte caráter cristão e trinitário, evocando Cristo, o Espírito Santo
e São João. Essa discrepância mostra que a Maçonaria estava em processo de
transformação: as Constituições olhavam para o futuro, enquanto os rituais
ainda preservavam o peso da tradição. Com o tempo, a introdução do grau de
Mestre e do mito de Hiram representou uma inovação simbólica que ajudou a
consolidar a identidade da Ordem.
Politicamente,
a Maçonaria refletia os ideais whigs de equilíbrio entre monarquia e
parlamento, uma espécie de projeção do cosmos newtoniano sobre a ordem social.
Assim, a Fraternidade tornava-se não apenas um espaço espiritual, mas também
uma escola de sociabilidade e civismo.
Os retratos
cruzados de James Anderson e Théophile Désaguliers revelam o quanto a Maçonaria
moderna nasceu do encontro entre tradição e modernidade. Anderson, com seu
antiquarianismo, forneceu à Ordem uma genealogia histórica e simbólica,
enquanto Désaguliers, com seu newtonianismo, lhe deu um espírito científico e
racional. O rosacrucianismo, por sua vez, acrescentou a dimensão hermética e
contemplativa. O resultado foi uma síntese original, capaz de harmonizar
erudição, ciência e espiritualidade em torno de um projeto universalista.
A Maçonaria do
século XVIII, assim, consolidou-se como espaço de diálogo entre correntes
diversas, herdeira de um passado medieval e renascentista, mas aberta às luzes
da ciência e da tolerância religiosa.
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